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A Contemplação do Esquecimento em “O Agente Secreto”
Por Francisco Escorsim
|
17.nov.2025
Midle Dot

Confesso minha preguiça de escrever sobre “O Agente Secreto”, filme brasileiro que há meses é tratado como obra-prima pela mídia nacional, mesmo não tendo mais do que meia dúzia de pessoas de fato assistido até estrear nos cinemas, o que aconteceu apenas dias atrás.

Preguiça não pelo filme, mas pela guerra cultural que tem impedido apreciações honestas sobre as obras produzidas no país nos últimos anos. Você não precisa sequer assisti-las, basta saber de que lado político os artistas estão para já gostar ou desgostar. E ainda que assista, faz isso com tanta má ou boa vontade que o juízo não tem como não estar contaminado.

É provável que só no futuro seja possível uma avaliação mais justa de filmes como “Ainda Estou Aqui” e “O Agente Secreto”. Ainda assim, tento. 

Aliás, no ano passado fui cancelado por dizer que “Ainda Estou Aqui” não valia a ida ao cinema. Não porque seria um filme ruim, mas porque, hoje em dia, com tanta concorrência de outras telas, para fazer gastar uma pequena fortuna para ir ao cinema, só sendo um filme realmente valioso. Não me pareceu ser o caso daquele, como também não me parece ser o de “O Agente Secreto”.

Repito, não valer a ida ao cinema não significa que não valha a pena assistir quando ficar disponível nos serviços de streamings ou canais de TV. São filmes medianos, com alguns pontos fortes e outros tantos fracos. E, na comparação, acho até que “O Agente Secreto” entrega mais do que o filme de Walter Salles. 

Em “O Agente Secreto”, certamente o ponto mais forte é a atuação de Wagner Moura. Embora ela chame mais a atenção pelo contraste com várias outras de quem claramente não são atores. 

Se o leitor não assistiu o filme ainda, aviso que darei spoilers daqui por diante e, neste filme, isso importa, pois a experiência de assistir, sabendo de antemão o que acontece no fim, será diminuída. É outro ponto forte da obra, crucial até, pois a partir da revelação final tudo o que veio antes ganha significação maior, inclusive o que parecia ser um ponto fraco.

Antes de seguir, repito o alerta: melhor assistir antes de ler.

O que me parecia um ponto (bem) fraco é a lentidão de várias cenas, um demorar-se em momentos que parecem desnecessários, tornando o filme arrastado. Até chegar nas cenas finais, o espectador se equilibra entre o tédio e a curiosidade por parecer haver algo mais que ainda será contado.

Quem conseguir superar o aparente tédio e se manter intrigado será recompensado no fim, quando se percebe que a lentidão servia a outra coisa, algo que, na falta de nome melhor, chamarei de contemplação do esquecimento.

Há várias causas para o esquecimento e o filme retrata algumas delas. Além da degradação temporal, a mera passagem do tempo, como, por exemplo, a lembrança do cadáver que aparece na primeira cena. Chegando no fim, duvido que alguém ainda se lembre dele. Por vezes, essa degradação é ajudada também pela substituição de lugares, como os cinemas de rua que existiam nos anos 1970, na cidade do Recife, e se tornaram outros lugares, como vemos no fim. 

Esquecemos também o que é trivial, o que não deixa marcas, como a longa cena da senhora dona da pousada apresentando a casa para o protagonista. Esquecemos também por apagamento proposital, seja porque algo dói tanto que preferimos não lembrar de nada associado ao ocorrido, como para o filho do protagonista, seja porque se quer esconder algo, forçar que não seja lembrado, como a perna encontrada dentro do tubarão.

É provável que para um diretor cuja ideologia costuma vir antes e acima de sua arte (vide “Bacurau”), este filme seja sobre o esquecimento forçado causado pela ditadura militar, com tudo mais sendo consequência disso. A ditadura é o verdadeiro “agente secreto”, que não tem nada a ver com espionagem ou coisa que o valha. É mais como um ingrediente de uma receita, aquele que não se revela e que faz toda a diferença no resultado final. 

No filme, este ingrediente é a ditadura, nem tão secreta assim, pois onipresente nos quadros de Geisel pendurados nas paredes em várias cenas, mas jamais mencionada de forma explícita. Seria como o tubarão do filme de Spielberg, referência simbólica também onipresente. Quem já assistiu sabe que o tubarão mal aparece na obra, embora em torno dele tudo aconteça.

No fim das contas, porém e ainda bem, o filme transcende a tediosa repetição denuncista contra a última ditadura militar. E vale a pena frisar o última, pois tivemos outras, mas para militantes como o diretor, parece ter existido apenas essa com histórias que precisariam ser contadas. A ideologia também é uma forma de esquecimento, pois fragmenta a realidade e o passado, fazendo questão de esquecer o que nela não se encaixa.

Os pontos mais fracos da obra, aliás, estão justamente onde o diretor força sua visão de mundo. O personagem xenófobo, por exemplo, é construído de maneira tão tosca e esquemática que o torna mais inverossímil do que representativo. O personagem judeu tratado como nazista é outra tosquice despropositada, não faz a menor diferença para a história e só a enfraquece, dispersando a concentração intrigante do ritmo lento e silencioso com que se desenvolve o que vai sendo ou será esquecido.

O principal esquecimento é o da mãe, tanto a do protagonista quanto a do seu filho. Armando não possui nenhuma referência para lembrar de sua mãe. Tudo que ele possui é um nome, bastante comum, e procura no instituto de identificação onde trabalha o documento da identidade dela, onde provavelmente teria uma foto. Justamente neste momento de procura que seu sogro chega, trazendo um desenho do filho, com um escrito dele dizendo: “Eu acho que já estou começando a conseguir esquecer mamãe”.

Como o filme não conta a história da morte da mãe do menino e esposa de Armando, podemos dizer que isso foi esquecido. Não me parece que seja um furo grave de roteiro, mas, se for, acabou servindo à forma final da obra, que termina no olhar do menino crescido, que não gosta de falar do passado, talvez nem de lembrar. 

Como é o mesmo Wagner Moura quem interpreta pai e filho quando adultos, temos uma unificação de ambos nos olhares do ator, que é o que realmente conduz o filme, mais do que suas falas, sua história. Da primeira à última cena, o olhar do protagonista é quem nos conduz como um observador melancólico do destino, como na cena inicial onde se inquieta com o cadáver no posto de gasolina, mas, impotente, resigna-se por falta de opção. 

A atuação de Moura como Armando é consistente nessa resignação com dignidade, no seu olhar entristecido mesmo nos momentos de breve alegria ou de indignação. E esse olhar é mantido quando interpreta seu filho, sabendo construir uma postura corporal diferente, de alguém que não passou pelo que o pai viveu, mas comunga do mesmo passado que volta e meia insiste em retornar do esquecimento da memória.

O filme não resolve a questão do esquecimento, nem poderia. Mas consegue transformá-lo em experiência, que não poderia ser outra senão a de testemunhar a ausência do que foi esquecido e a presença do que se esquecerá. Não faz parte da trilha sonora, mas a música de Chico Buarque, “Pedaço de Mim”, casaria perfeitamente no fim, com os versos sendo cantados enquanto a tela escurece: “Leva o teu olhar / Que a saudade é o pior tormento / É pior do que o esquecimento / (…) Lava os olhos meus / Que a saudade é o pior castigo / E eu não quero levar comigo / A mortalha do amor / Adeus”. 

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Preguiça não pelo filme, mas pela guerra cultural que tem impedido apreciações honestas sobre as obras produzidas no país nos últimos anos. Você não precisa sequer assisti-las, basta saber de que lado político os artistas estão para já gostar ou desgostar. E ainda que assista, faz isso com tanta má ou boa vontade que o juízo não tem como não estar contaminado.

É provável que só no futuro seja possível uma avaliação mais justa de filmes como “Ainda Estou Aqui” e “O Agente Secreto”. Ainda assim, tento. 

Aliás, no ano passado fui cancelado por dizer que “Ainda Estou Aqui” não valia a ida ao cinema. Não porque seria um filme ruim, mas porque, hoje em dia, com tanta concorrência de outras telas, para fazer gastar uma pequena fortuna para ir ao cinema, só sendo um filme realmente valioso. Não me pareceu ser o caso daquele, como também não me parece ser o de “O Agente Secreto”.

Repito, não valer a ida ao cinema não significa que não valha a pena assistir quando ficar disponível nos serviços de streamings ou canais de TV. São filmes medianos, com alguns pontos fortes e outros tantos fracos. E, na comparação, acho até que “O Agente Secreto” entrega mais do que o filme de Walter Salles. 

Em “O Agente Secreto”, certamente o ponto mais forte é a atuação de Wagner Moura. Embora ela chame mais a atenção pelo contraste com várias outras de quem claramente não são atores. 

Se o leitor não assistiu o filme ainda, aviso que darei spoilers daqui por diante e, neste filme, isso importa, pois a experiência de assistir, sabendo de antemão o que acontece no fim, será diminuída. É outro ponto forte da obra, crucial até, pois a partir da revelação final tudo o que veio antes ganha significação maior, inclusive o que parecia ser um ponto fraco.

Antes de seguir, repito o alerta: melhor assistir antes de ler.

O que me parecia um ponto (bem) fraco é a lentidão de várias cenas, um demorar-se em momentos que parecem desnecessários, tornando o filme arrastado. Até chegar nas cenas finais, o espectador se equilibra entre o tédio e a curiosidade por parecer haver algo mais que ainda será contado.

Quem conseguir superar o aparente tédio e se manter intrigado será recompensado no fim, quando se percebe que a lentidão servia a outra coisa, algo que, na falta de nome melhor, chamarei de contemplação do esquecimento.

Há várias causas para o esquecimento e o filme retrata algumas delas. Além da degradação temporal, a mera passagem do tempo, como, por exemplo, a lembrança do cadáver que aparece na primeira cena. Chegando no fim, duvido que alguém ainda se lembre dele. Por vezes, essa degradação é ajudada também pela substituição de lugares, como os cinemas de rua que existiam nos anos 1970, na cidade do Recife, e se tornaram outros lugares, como vemos no fim. 

Esquecemos também o que é trivial, o que não deixa marcas, como a longa cena da senhora dona da pousada apresentando a casa para o protagonista. Esquecemos também por apagamento proposital, seja porque algo dói tanto que preferimos não lembrar de nada associado ao ocorrido, como para o filho do protagonista, seja porque se quer esconder algo, forçar que não seja lembrado, como a perna encontrada dentro do tubarão.

É provável que para um diretor cuja ideologia costuma vir antes e acima de sua arte (vide “Bacurau”), este filme seja sobre o esquecimento forçado causado pela ditadura militar, com tudo mais sendo consequência disso. A ditadura é o verdadeiro “agente secreto”, que não tem nada a ver com espionagem ou coisa que o valha. É mais como um ingrediente de uma receita, aquele que não se revela e que faz toda a diferença no resultado final. 

No filme, este ingrediente é a ditadura, nem tão secreta assim, pois onipresente nos quadros de Geisel pendurados nas paredes em várias cenas, mas jamais mencionada de forma explícita. Seria como o tubarão do filme de Spielberg, referência simbólica também onipresente. Quem já assistiu sabe que o tubarão mal aparece na obra, embora em torno dele tudo aconteça.

No fim das contas, porém e ainda bem, o filme transcende a tediosa repetição denuncista contra a última ditadura militar. E vale a pena frisar o última, pois tivemos outras, mas para militantes como o diretor, parece ter existido apenas essa com histórias que precisariam ser contadas. A ideologia também é uma forma de esquecimento, pois fragmenta a realidade e o passado, fazendo questão de esquecer o que nela não se encaixa.

Os pontos mais fracos da obra, aliás, estão justamente onde o diretor força sua visão de mundo. O personagem xenófobo, por exemplo, é construído de maneira tão tosca e esquemática que o torna mais inverossímil do que representativo. O personagem judeu tratado como nazista é outra tosquice despropositada, não faz a menor diferença para a história e só a enfraquece, dispersando a concentração intrigante do ritmo lento e silencioso com que se desenvolve o que vai sendo ou será esquecido.

O principal esquecimento é o da mãe, tanto a do protagonista quanto a do seu filho. Armando não possui nenhuma referência para lembrar de sua mãe. Tudo que ele possui é um nome, bastante comum, e procura no instituto de identificação onde trabalha o documento da identidade dela, onde provavelmente teria uma foto. Justamente neste momento de procura que seu sogro chega, trazendo um desenho do filho, com um escrito dele dizendo: “Eu acho que já estou começando a conseguir esquecer mamãe”.

Como o filme não conta a história da morte da mãe do menino e esposa de Armando, podemos dizer que isso foi esquecido. Não me parece que seja um furo grave de roteiro, mas, se for, acabou servindo à forma final da obra, que termina no olhar do menino crescido, que não gosta de falar do passado, talvez nem de lembrar. 

Como é o mesmo Wagner Moura quem interpreta pai e filho quando adultos, temos uma unificação de ambos nos olhares do ator, que é o que realmente conduz o filme, mais do que suas falas, sua história. Da primeira à última cena, o olhar do protagonista é quem nos conduz como um observador melancólico do destino, como na cena inicial onde se inquieta com o cadáver no posto de gasolina, mas, impotente, resigna-se por falta de opção. 

A atuação de Moura como Armando é consistente nessa resignação com dignidade, no seu olhar entristecido mesmo nos momentos de breve alegria ou de indignação. E esse olhar é mantido quando interpreta seu filho, sabendo construir uma postura corporal diferente, de alguém que não passou pelo que o pai viveu, mas comunga do mesmo passado que volta e meia insiste em retornar do esquecimento da memória.

O filme não resolve a questão do esquecimento, nem poderia. Mas consegue transformá-lo em experiência, que não poderia ser outra senão a de testemunhar a ausência do que foi esquecido e a presença do que se esquecerá. Não faz parte da trilha sonora, mas a música de Chico Buarque, “Pedaço de Mim”, casaria perfeitamente no fim, com os versos sendo cantados enquanto a tela escurece: “Leva o teu olhar / Que a saudade é o pior tormento / É pior do que o esquecimento / (…) Lava os olhos meus / Que a saudade é o pior castigo / E eu não quero levar comigo / A mortalha do amor / Adeus”. 

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