Há vinte anos atrás vivia-se a idade de ouro dos blogs. Tive vários, aliás. O último a permanecer ativo, embora eu não postasse mais nada desde 2006, chamava-se Cinema Elegante. Até poucos meses atrás ainda podia ser lido – perdi a senha de acesso para encerrá-lo e o servidor (blogspot, acho) nunca respondeu minhas tentativas de contato. Ficou flutuando por aí como uma daquelas garrafinhas de náufrago.
Não acredito em coincidências, tudo significa. Justo quando o tal servidor resolveu deletar blogs inativos há muito tempo, lá se perdendo de vez minha última garrafinha, chegou-me o convite para escrever por aqui: um blog, um blog sobre cinema. Não acredito em coincidências, mesmo. Essas coisas são sempre um chamado.
Volta e meia vinha alguém falar comigo nas redes sociais falando daquele blog, comentando algumas das análises de filmes que fazia por lá. Sempre me espantei com isso. Ou não seria de se espantar quando tudo parece tão efêmero na internet e descobrir que ainda tem quem se interesse por textos longos escritos há 20 anos atrás, de filmes já esquecidos e que nem disponíveis estão nos serviços de streaming atualmente, como In America, It’s All About Love e Levity? (Aliás, fica a dica, Lumine!)
A garrafinha encontrou outros náufragos. Insisto em chamar de náufrago porque sempre escrevi como um e para outros que assim se sentem. Nunca me interessei pelo cinema – ou qualquer outra arte – por razões estéticas ou técnicas ou seja lá o que for. Levo em consideração tudo isso e mais um pouco, é claro, mas não é meu foco, nunca foi. Para mim, ou as obras me ajudam a viver ou sobreviver ou não interessam a ponto de falar sobre, por melhores que sejam, por clássicos que se tornem, por mais que recebam todos os prêmios e estrelinhas de críticos especializados.
O que encontrava – e continuo a buscar – nos filmes era algo que me ajudava a me orientar na vida, ensinar a nadar ou, ao menos, ficar à tona para não me afogar. Cada um foi como uma tabuinha de salvação, sério. Todos os textos daquele blog eram exercícios de expressão do que tanto havia me tocado quando os assisti. Tornavam-se, então, ocasião para também exercitar minha atenção, percepção e digestão do que eu assistia. Nenhum era uma crítica cinematográfica, uma valoração da obra, mas um aproveitar da sua luminosidade para enxergar algo da realidade retratada. Algo que também se iluminara em mim.
Por exemplo, lembro de sofrer para entender o que seria a razão humana, que estudava a partir de uma aula transcrita do filósofo Olavo de Carvalho, que por sua vez me remeteu a várias outras leituras de diversos filósofos e intelectuais. Mas foi só quando enxerguei alguns dos sentidos da razão encarnados na forma de um filme, Magnolia, que passei a entender algo de fato. Entender não apenas de forma abstrata, teórica – o que já tinha acontecido com as leituras -, mas como realidade, um fenômeno que estava em mim, em todos, no mundo que nos cerca.
O texto sobre o filme acabou tendo mais de 30 páginas – se impresso -, praticamente inviabilizando a leitura online (quem aguenta ler tanto num site?). Por incrível que pareça, foi o texto mais lido e o que mais trouxe pessoas para falar comigo. Tornou-se parte do meu trabalho como professor, sendo transformado em aulas, várias. Agora, se você me perguntar quão bom Magnolia é como cinema, que nota daria, não saberia dizer. Tanto faz, na verdade. Desconfio que seja muito bom, mas o que ele me deu foi muito melhor do que “um grande filme”. Por mim, pode ter ganhado todos os Oscar ou “Framboesas de Ouro” do ano do seu lançamento e dos vindouros. Não faz diferença.
Toda obra de arte, por pior que seja e ainda que feita apenas de clichês (não é o caso de Magnolia), contém alguma luz, espelha algo da realidade. Pode haver mais luz em um clássico do cinema, mas também há no blockbuster da moda e até num esquecível caça-níqueis. E, se formos honestos, às vezes só temos condição de captar a luz óbvia, aquela que os clichês fornecem. Assim é quando somos clichês ambulantes também, precisando de algo mais simples, de fácil uso, mais à mão. Qualquer coisa mais complexa e elaborada já não conseguiremos utilizar porque sequer conseguimos perceber. Eu era assim, tentava não ser, por isso me exercitava.
É aí que entra o elegante no título daquele blog. A palavra elegância deriva do latim elegantia, que em parte significa “gosto, refinamento”. É o significado corrente ainda hoje. Entretanto, na sua origem, esse substantivo significava mais, estava relacionado ao verbo eligere, que significa “escolher, selecionar”. O temor elegantia, portanto, remetia também ao ato de selecionar algo, eleger. Eis porque a elegância é ou deveria ser, antes de tudo, uma arte. A arte de escolher, de preferir o preferível dentre as opções disponíveis.
Isso não significava que eu me considerava um sujeito elegante por saber preferir os melhores dentre os filmes cinematográficos. Longe disso. Os exercícios eram justamente para tentar aprender a escolher melhor nessa vida. Porque isto não é fácil, é também dramático, como ensinou Ortega y Gasset:
A elegância está no cinema, sempre, nas escolhas feitas pelos personagens, que podem estar a viver situações análogas às que você pode estar vivendo agora, ou ter vivido antes ou ainda por viver no futuro. Ficamos mais próximos de nos tornarmos elegantes se praticarmos a arte de assistir os filmes com este propósito de aprender com a elegância ou deselegância alheia, alimentando nosso imaginário com novas ou diversas possibilidades de vida, ampliando nossa visão de mundo, enriquecendo nossa bagagem de crenças e valores.
Melhor do que explicar é exemplificar. Entrou no catálogo da Lumine outro filme daqueles que se tornaram motivo de aulas para mim: Uma História Real, de David Lynch. Quer visualizar o que é o drama da eleição? Acompanhe a odisseia de Alvin Straight, atente às suas escolhas, às consequências delas, também daqueles com quem ele vai cruzando pela estrada. O filme é uma faculdade sobre elegância. Quem sabe não voltamos a conversar sobre ele por aqui mais adiante? Se desejar, deixe um comentário neste sentido, ou mande uma mensagem.
Enfim, aquele blog, hoje tenho clareza disso, foi a primeira braçada em direção ao que se tornaria depois meu projeto de vida com a formação do imaginário e educação da imaginação. O náufrago avistara terra firme. Agora, é nesta terra firme que piso, dando mais um passo em continuidade dessa jornada que sei quando começou, mas não quando terminar. Agradeço, de coração, à Lumine pelo convite para escrever por aqui. Aceitar foi uma decisão elegante de minha parte, reconheçamos. É uma honra.
Há vinte anos atrás vivia-se a idade de ouro dos blogs. Tive vários, aliás. O último a permanecer ativo, embora eu não postasse mais nada desde 2006, chamava-se Cinema Elegante. Até poucos meses atrás ainda podia ser lido – perdi a senha de acesso para encerrá-lo e o servidor (blogspot, acho) nunca respondeu minhas tentativas de contato. Ficou flutuando por aí como uma daquelas garrafinhas de náufrago.
Não acredito em coincidências, tudo significa. Justo quando o tal servidor resolveu deletar blogs inativos há muito tempo, lá se perdendo de vez minha última garrafinha, chegou-me o convite para escrever por aqui: um blog, um blog sobre cinema. Não acredito em coincidências, mesmo. Essas coisas são sempre um chamado.
Volta e meia vinha alguém falar comigo nas redes sociais falando daquele blog, comentando algumas das análises de filmes que fazia por lá. Sempre me espantei com isso. Ou não seria de se espantar quando tudo parece tão efêmero na internet e descobrir que ainda tem quem se interesse por textos longos escritos há 20 anos atrás, de filmes já esquecidos e que nem disponíveis estão nos serviços de streaming atualmente, como In America, It’s All About Love e Levity? (Aliás, fica a dica, Lumine!)
A garrafinha encontrou outros náufragos. Insisto em chamar de náufrago porque sempre escrevi como um e para outros que assim se sentem. Nunca me interessei pelo cinema – ou qualquer outra arte – por razões estéticas ou técnicas ou seja lá o que for. Levo em consideração tudo isso e mais um pouco, é claro, mas não é meu foco, nunca foi. Para mim, ou as obras me ajudam a viver ou sobreviver ou não interessam a ponto de falar sobre, por melhores que sejam, por clássicos que se tornem, por mais que recebam todos os prêmios e estrelinhas de críticos especializados.
O que encontrava – e continuo a buscar – nos filmes era algo que me ajudava a me orientar na vida, ensinar a nadar ou, ao menos, ficar à tona para não me afogar. Cada um foi como uma tabuinha de salvação, sério. Todos os textos daquele blog eram exercícios de expressão do que tanto havia me tocado quando os assisti. Tornavam-se, então, ocasião para também exercitar minha atenção, percepção e digestão do que eu assistia. Nenhum era uma crítica cinematográfica, uma valoração da obra, mas um aproveitar da sua luminosidade para enxergar algo da realidade retratada. Algo que também se iluminara em mim.
Por exemplo, lembro de sofrer para entender o que seria a razão humana, que estudava a partir de uma aula transcrita do filósofo Olavo de Carvalho, que por sua vez me remeteu a várias outras leituras de diversos filósofos e intelectuais. Mas foi só quando enxerguei alguns dos sentidos da razão encarnados na forma de um filme, Magnolia, que passei a entender algo de fato. Entender não apenas de forma abstrata, teórica – o que já tinha acontecido com as leituras -, mas como realidade, um fenômeno que estava em mim, em todos, no mundo que nos cerca.
O texto sobre o filme acabou tendo mais de 30 páginas – se impresso -, praticamente inviabilizando a leitura online (quem aguenta ler tanto num site?). Por incrível que pareça, foi o texto mais lido e o que mais trouxe pessoas para falar comigo. Tornou-se parte do meu trabalho como professor, sendo transformado em aulas, várias. Agora, se você me perguntar quão bom Magnolia é como cinema, que nota daria, não saberia dizer. Tanto faz, na verdade. Desconfio que seja muito bom, mas o que ele me deu foi muito melhor do que “um grande filme”. Por mim, pode ter ganhado todos os Oscar ou “Framboesas de Ouro” do ano do seu lançamento e dos vindouros. Não faz diferença.
Toda obra de arte, por pior que seja e ainda que feita apenas de clichês (não é o caso de Magnolia), contém alguma luz, espelha algo da realidade. Pode haver mais luz em um clássico do cinema, mas também há no blockbuster da moda e até num esquecível caça-níqueis. E, se formos honestos, às vezes só temos condição de captar a luz óbvia, aquela que os clichês fornecem. Assim é quando somos clichês ambulantes também, precisando de algo mais simples, de fácil uso, mais à mão. Qualquer coisa mais complexa e elaborada já não conseguiremos utilizar porque sequer conseguimos perceber. Eu era assim, tentava não ser, por isso me exercitava.
É aí que entra o elegante no título daquele blog. A palavra elegância deriva do latim elegantia, que em parte significa “gosto, refinamento”. É o significado corrente ainda hoje. Entretanto, na sua origem, esse substantivo significava mais, estava relacionado ao verbo eligere, que significa “escolher, selecionar”. O temor elegantia, portanto, remetia também ao ato de selecionar algo, eleger. Eis porque a elegância é ou deveria ser, antes de tudo, uma arte. A arte de escolher, de preferir o preferível dentre as opções disponíveis.
Isso não significava que eu me considerava um sujeito elegante por saber preferir os melhores dentre os filmes cinematográficos. Longe disso. Os exercícios eram justamente para tentar aprender a escolher melhor nessa vida. Porque isto não é fácil, é também dramático, como ensinou Ortega y Gasset:
A elegância está no cinema, sempre, nas escolhas feitas pelos personagens, que podem estar a viver situações análogas às que você pode estar vivendo agora, ou ter vivido antes ou ainda por viver no futuro. Ficamos mais próximos de nos tornarmos elegantes se praticarmos a arte de assistir os filmes com este propósito de aprender com a elegância ou deselegância alheia, alimentando nosso imaginário com novas ou diversas possibilidades de vida, ampliando nossa visão de mundo, enriquecendo nossa bagagem de crenças e valores.
Melhor do que explicar é exemplificar. Entrou no catálogo da Lumine outro filme daqueles que se tornaram motivo de aulas para mim: Uma História Real, de David Lynch. Quer visualizar o que é o drama da eleição? Acompanhe a odisseia de Alvin Straight, atente às suas escolhas, às consequências delas, também daqueles com quem ele vai cruzando pela estrada. O filme é uma faculdade sobre elegância. Quem sabe não voltamos a conversar sobre ele por aqui mais adiante? Se desejar, deixe um comentário neste sentido, ou mande uma mensagem.
Enfim, aquele blog, hoje tenho clareza disso, foi a primeira braçada em direção ao que se tornaria depois meu projeto de vida com a formação do imaginário e educação da imaginação. O náufrago avistara terra firme. Agora, é nesta terra firme que piso, dando mais um passo em continuidade dessa jornada que sei quando começou, mas não quando terminar. Agradeço, de coração, à Lumine pelo convite para escrever por aqui. Aceitar foi uma decisão elegante de minha parte, reconheçamos. É uma honra.
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