A Festa de Babette, de Gabriel Axel, é uma daquelas experiências cinematográficas cujo poder de encanto pode ser sentido desde as primeiras imagens. Um testemunho vivo de como a arte do cinema pode ser, como queria Andrei Tarkovski, “uma arte que predispõe a nossa alma para o bem”.
Baseado em texto homônimo da escritora dinamarquesa Karen Blixen, o filme de Axel é um dos melhores exemplos de como uma adaptação pode ser fiel à obra que lhe originara.
O prólogo já da um indício do sentido profundo do filme: entre tons de azul ligeiramente diferentes, a fronteira entre o céu e a terra é quase imperceptível. Na cinzenta paisagem dinamarquesa, essa primeira imagem prenuncia a comunhão que, naquele lugar, existe entre as coisas terrenas e as coisas celestes:
O cenário é austero, assim como o são as pessoas que nele habitam: os integrantes de uma seita protestante bastante rigorosa nas questões espirituais e comportamentais. Eles vivem uma vida simples, dedicada exclusivamente ao ofício religioso e às pequenas atividades cotidianas. E é essa simplicidade que, ainda nos primeiros quadros, encontramos traduzida no panorama da cidadezinha:
A imagem revela-nos moradias quase camufladas na paisagem, como se fossem fósseis, como se nos dissessem que as pessoas que ali vivem não deixarão “nenhum breve traço sobre a terra”, pois, desde já, encontram-se “imiscuídas no pó ao qual um dia retornarão”.
No entanto, após o corte, nos deparamos com uma imagem profundamente simbólica e prenunciadora da epifania que encontraremos no final da narrativa. O símbolo aparece por um breve momento, mas não deixa de ser significativo:
O peixe, símbolo da água, do batismo, de Jesus Cristo.
O símbolo por excelência do alimento cuja ingestão não garante apenas a sobrevivência física, mas também a completa transformação espiritual. Ele não aparece no início de A festa de Babette por um acaso, mas como prenúncio de que aquele povoado sem vida, por ora confundido com o pó que um dia o assimilará completamente, passará por uma grande regeneração.
Após esse simbólico prólogo, há um arco narrativo que nos transporta para o passado das personagens Martine e Phillipa, filhas do deão fundador da religião seguida por todos os habitantes do vilarejo.
O clímax da história será o jantar preparado por Babette e o efeito epifânico que ele desencadeará na vida desses habitantes, mas para compreendermos este efeito é importante que conheçamos a história passada de Martine e Phillipa, pois essa história é iluminada pela arte de Babette.
A trajetória das duas irmãs é muito parecida com a de Babette: são vidas inteiramente dedicadas ao próximo, nas quais os dons individuais são oferecidos para a realização do bem alheio. Além disso, suas narrativas demonstram a importância que a arte exerce na vida humana e como a realização artística está intimamente ligada ao sentimento do sagrado.
A história de Babette propõe uma revalorização do sagrado mediante a expressão artística e ao sacrifício por ela exigido.
As duas irmãs não seguem o destino que lhes é inicialmente sugerido: Phillipa não se transforma na prima-dona prefigurada pelo cantor Achille Papin; e Martine não se casa com o general Loewenhielm, mas isso não as impede de viver uma vida plena de sentido: elas passariam adiante os valores aprendidos com seu pai e se sacrificariam pelo bem de sua comunidade.
Embora Phillipa não tenha ficado famosa, ela nunca deixara de cantar; ou seja, nunca deixara de exercer o seu dom. E ainda que Martine não tenha se casado, ela nunca deixou de ser um índice de beleza na vida das outras pessoas, e principalmente na de Loewenhielm, o qual, numa das cenas mais belas do filme, diz ter vivido “todos os dias de sua vida” ao lado dela.
Ocorre que, no momento em que Babette chega ao vilarejo, fugindo de uma revolução política na França, algo havia se perdido no horizonte de consciência daquelas pessoas que ali viviam; e o que aparece no filme mediante as brilhantes atuações de seus intérpretes, é descrito da seguinte maneira no conto de Blixen:
“De um passado meio século distante, quando as ovelhas sem pastor haviam se extraviado pelas montanhas, hóspedes sinistros, nos calcanhares dos devotos, aproveitaram a brecha para penetrar sem ser convidados e lançaram sobre os pequenos cômodos frio e escuridão. Pecados dos velhos irmãos e irmãs vieram à tona com um remorso tardio e excruciante como dor de dente, e pecados de outros contra eles com o ressentimento amargo do sangue envenenado”.
O antídoto para esse sentimento será encontrado na miraculosa arte culinária de Babette, que será responsável pelo exame de consciência coletivo pelo qual passam todas as personagens. Ao revelar os defeitos dos habitantes do vilarejo, o seu “sangue envenenado”, Blixen não pretendia denunciar uma espécie de “hipocrisia” da parte deles, ou de “apatia”. Ela pretendia demonstrar a sua fragilidade humana e, consequentemente — sobretudo quando consideramos a metáfora do banquete — a contínua necessidade de regeneração, de buscar por um alimento que é preparado para um povo que, “ao mesmo tempo, é santo e pecador”. Por isso, não há necessariamente uma crítica ao modo de vida daqueles personagens, mas apenas a identificação de uma necessidade: a de reencontrar a beleza e o sentido que há nos atos cotidianos da vida.
A direção de Axel é contida. Ele é um cineasta que privilegia, sobretudo, a história que está contando. Mas, sob a simplicidade de estilo e da aparente banalidade da vida das personagens que ele retrata, há nesse filme um encadeamento de símbolos que fundamenta o envolvimento do espectador com a narrativa.
O melhor exemplo é a ceia final. A situação que, dentro do cristianismo, é princípio último e ato fundador da própria religião. A ceia preparada por Babette é precedida por imagens sacrificiais de coisas vivas que se transformam em alimento. Em suas mãos, o ato da refeição se transformou “numa espécie de envolvimento amoroso”. Porém, “num envolvimento amoroso daquela categoria nobre e romântica na qual a pessoa não mais distingue entre apetite ou saciedade, corporal e espiritual!”. Ou seja: a arte de Babette foi capaz de re-ligar aquelas pessoas com o seu verdadeiro eu; de despertar-lhes, novamente, para o sentido da vida, do qual elas haviam se esquecido há muito tempo.
Todos aqueles sentimentos despertos durante a refeição, todas aquelas possibilidades de ser já estavam dentro de cada um daqueles indivíduos antes do jantar. O momento luminoso da ceia não foi como um contraste que serviu para mostrar o quanto as suas vidas eram feias. Pelo contrário, serviu para mostrar-lhes o quanto de riqueza havia dentro de suas almas:
“Quando, mais tarde em suas vidas, pensaram nessa noite, nunca lhes ocorreu, a nenhum deles, que pudessem ter se exaltado por mérito próprio. Percebiam que a graça infinita sobre a qual o general Loewenhielm falara fora-lhes outorgada e nem mesmo se espantaram com o fato, pois se tratara da concretização de uma esperança sempre presente. As vãs ilusões deste mundo haviam se desmanchado diante de seus olhos como fumaça e viram o universo como realmente é. Foram agraciados com uma hora do milênio”.
As escolhas artísticas de Axel traduziram o conto com fidelidade. Como não faria muito sentido inserir as belíssimas descrições de Blixen numa voz off, Axel optou por criar ações simbólicas que fossem capazes de suscitar os mesmos sentimentos provocados pelo texto da escritora.
Ponto culminante dessas ações é a dança ao redor do poço. Tal gesto, que poderia ser apenas uma expressão espontânea e impremeditada, é na verdade a tradução da sensação de graça infinita sentida pelos convidados de Babette naquele momento.
Na sucessão de imagens singelas e poéticas da ceia, há uma festa de sentidos, os quais são aguçados pela experiência culinária e captados com muita ternura pela câmera de Axel. Mas essa experiência sensível serve para despertar, em cada um dos convidados, a consciência da sua realidade espiritual.
Aí, a arte de Babette — que é fruto de seu talento, mas que é realizada como um exercício de amor ao próximo — revela que há momentos nos quais os sentidos humanos não são meramente vis (espelho da queda), mas sim um testemunho da inteligência divina, uma experiência individual das “amplidões celestes e terrestres” da vida. De repente, por uma feliz combinação de efeitos sensíveis, aquelas pessoas sentiram uma felicidade tão intensa que tiveram uma incontrolável vontade de sair dançando.
Inevitavelmente, quem assiste a A festa de Babette também acaba sendo tomado por um intenso sentimento de felicidade; também compartilha, por meio da expressão artística, de um breve “instante de graça infinita”.
A Festa de Babette, de Gabriel Axel, é uma daquelas experiências cinematográficas cujo poder de encanto pode ser sentido desde as primeiras imagens. Um testemunho vivo de como a arte do cinema pode ser, como queria Andrei Tarkovski, “uma arte que predispõe a nossa alma para o bem”.
Baseado em texto homônimo da escritora dinamarquesa Karen Blixen, o filme de Axel é um dos melhores exemplos de como uma adaptação pode ser fiel à obra que lhe originara.
O prólogo já da um indício do sentido profundo do filme: entre tons de azul ligeiramente diferentes, a fronteira entre o céu e a terra é quase imperceptível. Na cinzenta paisagem dinamarquesa, essa primeira imagem prenuncia a comunhão que, naquele lugar, existe entre as coisas terrenas e as coisas celestes:
O cenário é austero, assim como o são as pessoas que nele habitam: os integrantes de uma seita protestante bastante rigorosa nas questões espirituais e comportamentais. Eles vivem uma vida simples, dedicada exclusivamente ao ofício religioso e às pequenas atividades cotidianas. E é essa simplicidade que, ainda nos primeiros quadros, encontramos traduzida no panorama da cidadezinha:
A imagem revela-nos moradias quase camufladas na paisagem, como se fossem fósseis, como se nos dissessem que as pessoas que ali vivem não deixarão “nenhum breve traço sobre a terra”, pois, desde já, encontram-se “imiscuídas no pó ao qual um dia retornarão”.
No entanto, após o corte, nos deparamos com uma imagem profundamente simbólica e prenunciadora da epifania que encontraremos no final da narrativa. O símbolo aparece por um breve momento, mas não deixa de ser significativo:
O peixe, símbolo da água, do batismo, de Jesus Cristo.
O símbolo por excelência do alimento cuja ingestão não garante apenas a sobrevivência física, mas também a completa transformação espiritual. Ele não aparece no início de A festa de Babette por um acaso, mas como prenúncio de que aquele povoado sem vida, por ora confundido com o pó que um dia o assimilará completamente, passará por uma grande regeneração.
Após esse simbólico prólogo, há um arco narrativo que nos transporta para o passado das personagens Martine e Phillipa, filhas do deão fundador da religião seguida por todos os habitantes do vilarejo.
O clímax da história será o jantar preparado por Babette e o efeito epifânico que ele desencadeará na vida desses habitantes, mas para compreendermos este efeito é importante que conheçamos a história passada de Martine e Phillipa, pois essa história é iluminada pela arte de Babette.
A trajetória das duas irmãs é muito parecida com a de Babette: são vidas inteiramente dedicadas ao próximo, nas quais os dons individuais são oferecidos para a realização do bem alheio. Além disso, suas narrativas demonstram a importância que a arte exerce na vida humana e como a realização artística está intimamente ligada ao sentimento do sagrado.
A história de Babette propõe uma revalorização do sagrado mediante a expressão artística e ao sacrifício por ela exigido.
As duas irmãs não seguem o destino que lhes é inicialmente sugerido: Phillipa não se transforma na prima-dona prefigurada pelo cantor Achille Papin; e Martine não se casa com o general Loewenhielm, mas isso não as impede de viver uma vida plena de sentido: elas passariam adiante os valores aprendidos com seu pai e se sacrificariam pelo bem de sua comunidade.
Embora Phillipa não tenha ficado famosa, ela nunca deixara de cantar; ou seja, nunca deixara de exercer o seu dom. E ainda que Martine não tenha se casado, ela nunca deixou de ser um índice de beleza na vida das outras pessoas, e principalmente na de Loewenhielm, o qual, numa das cenas mais belas do filme, diz ter vivido “todos os dias de sua vida” ao lado dela.
Ocorre que, no momento em que Babette chega ao vilarejo, fugindo de uma revolução política na França, algo havia se perdido no horizonte de consciência daquelas pessoas que ali viviam; e o que aparece no filme mediante as brilhantes atuações de seus intérpretes, é descrito da seguinte maneira no conto de Blixen:
“De um passado meio século distante, quando as ovelhas sem pastor haviam se extraviado pelas montanhas, hóspedes sinistros, nos calcanhares dos devotos, aproveitaram a brecha para penetrar sem ser convidados e lançaram sobre os pequenos cômodos frio e escuridão. Pecados dos velhos irmãos e irmãs vieram à tona com um remorso tardio e excruciante como dor de dente, e pecados de outros contra eles com o ressentimento amargo do sangue envenenado”.
O antídoto para esse sentimento será encontrado na miraculosa arte culinária de Babette, que será responsável pelo exame de consciência coletivo pelo qual passam todas as personagens. Ao revelar os defeitos dos habitantes do vilarejo, o seu “sangue envenenado”, Blixen não pretendia denunciar uma espécie de “hipocrisia” da parte deles, ou de “apatia”. Ela pretendia demonstrar a sua fragilidade humana e, consequentemente — sobretudo quando consideramos a metáfora do banquete — a contínua necessidade de regeneração, de buscar por um alimento que é preparado para um povo que, “ao mesmo tempo, é santo e pecador”. Por isso, não há necessariamente uma crítica ao modo de vida daqueles personagens, mas apenas a identificação de uma necessidade: a de reencontrar a beleza e o sentido que há nos atos cotidianos da vida.
A direção de Axel é contida. Ele é um cineasta que privilegia, sobretudo, a história que está contando. Mas, sob a simplicidade de estilo e da aparente banalidade da vida das personagens que ele retrata, há nesse filme um encadeamento de símbolos que fundamenta o envolvimento do espectador com a narrativa.
O melhor exemplo é a ceia final. A situação que, dentro do cristianismo, é princípio último e ato fundador da própria religião. A ceia preparada por Babette é precedida por imagens sacrificiais de coisas vivas que se transformam em alimento. Em suas mãos, o ato da refeição se transformou “numa espécie de envolvimento amoroso”. Porém, “num envolvimento amoroso daquela categoria nobre e romântica na qual a pessoa não mais distingue entre apetite ou saciedade, corporal e espiritual!”. Ou seja: a arte de Babette foi capaz de re-ligar aquelas pessoas com o seu verdadeiro eu; de despertar-lhes, novamente, para o sentido da vida, do qual elas haviam se esquecido há muito tempo.
Todos aqueles sentimentos despertos durante a refeição, todas aquelas possibilidades de ser já estavam dentro de cada um daqueles indivíduos antes do jantar. O momento luminoso da ceia não foi como um contraste que serviu para mostrar o quanto as suas vidas eram feias. Pelo contrário, serviu para mostrar-lhes o quanto de riqueza havia dentro de suas almas:
“Quando, mais tarde em suas vidas, pensaram nessa noite, nunca lhes ocorreu, a nenhum deles, que pudessem ter se exaltado por mérito próprio. Percebiam que a graça infinita sobre a qual o general Loewenhielm falara fora-lhes outorgada e nem mesmo se espantaram com o fato, pois se tratara da concretização de uma esperança sempre presente. As vãs ilusões deste mundo haviam se desmanchado diante de seus olhos como fumaça e viram o universo como realmente é. Foram agraciados com uma hora do milênio”.
As escolhas artísticas de Axel traduziram o conto com fidelidade. Como não faria muito sentido inserir as belíssimas descrições de Blixen numa voz off, Axel optou por criar ações simbólicas que fossem capazes de suscitar os mesmos sentimentos provocados pelo texto da escritora.
Ponto culminante dessas ações é a dança ao redor do poço. Tal gesto, que poderia ser apenas uma expressão espontânea e impremeditada, é na verdade a tradução da sensação de graça infinita sentida pelos convidados de Babette naquele momento.
Na sucessão de imagens singelas e poéticas da ceia, há uma festa de sentidos, os quais são aguçados pela experiência culinária e captados com muita ternura pela câmera de Axel. Mas essa experiência sensível serve para despertar, em cada um dos convidados, a consciência da sua realidade espiritual.
Aí, a arte de Babette — que é fruto de seu talento, mas que é realizada como um exercício de amor ao próximo — revela que há momentos nos quais os sentidos humanos não são meramente vis (espelho da queda), mas sim um testemunho da inteligência divina, uma experiência individual das “amplidões celestes e terrestres” da vida. De repente, por uma feliz combinação de efeitos sensíveis, aquelas pessoas sentiram uma felicidade tão intensa que tiveram uma incontrolável vontade de sair dançando.
Inevitavelmente, quem assiste a A festa de Babette também acaba sendo tomado por um intenso sentimento de felicidade; também compartilha, por meio da expressão artística, de um breve “instante de graça infinita”.
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