Nascido em 1910, na cidade de Tóquio, o japonês Akira Kurosawa se apaixonou pelos filmes ainda na infância.
Na juventude, Kurosawa trabalhou como assistente direção, roteiro e fotografia para importantes diretores e, em 1943, ele iniciou a sua prolífera carreira de cineasta.
Considerado o autor de clássicos absolutos, Kurosawa se tornou um dos mais conhecidos e celebrados cineastas do Japão e um dos mais influentes diretores da história do cinema mundial.
Os seus filmes apresentam personagens que se questionam a respeito do sentido da vida e da morte, da ética das ações boas e ruins e da relação entre o destino e as escolhas pessoais. Mas, para além dos temas, o diretor buscou fixar tais investigações na própria forma dos filmes.
No presente texto, apresentamos uma pequena análise da carreira do cineasta a partir de comentários a respeito de seus principais filmes.
Um grande exemplo das motivações de Kurosawa é Rashomon (1950). O filme foi o primeiro êxito internacional do cineasta, conferindo-lhe, inclusive, o Leão de Ouro no Festival de Veneza e o Oscar de melhor filme estrangeiro, feitos até então inéditos para o cinema japonês.
Rashomon mostra uma sucessão de depoimentos de diferentes personagens a respeito de um mesmo crime. A cada testemunha, as descrições dos eventos são apresentadas em flashbacks, que guardam entre si contradições extremamente relevantes.
De acordo com a versão que está sendo contada, muda-se a sequência dos fatos, as motivações por trás dos crimes, as vítimas e os culpados. Em vez de se tornarem progressivamente mais transparentes, os acontecimentos se mostram cada vez mais opacos aos nossos olhos.
A verdade e a mentira rapidamente tornam-se indiscerníveis, e o trágico evento se apresenta como um enigma cuja dificuldade de resolução simboliza a angústia humana diante dos inúmeros mistérios sem solução que existem na vida.
Uma característica marcante do cinema de Kurosawa é a utilização da natureza como metáfora. Em Os sete samurais (1954), uma chuva torrencial cai durante a batalha entre os camponeses, liderados pelos ronins recrutados para protegê-los, e os bandidos saqueadores que os ameaçam. A água preenche os quadros, os personagens caem em poças de lama, todos têm dificuldade para enxergar o que está acontecendo.
O mundo parece estar próximo do fim. Após a longa preparação a que o filme nos apresentou, é chegada a hora da verdade.
Em Rashomon, o crime irresolúvel, objeto da investigação, acontece no interior de uma floresta muito densa, cujas árvores quase não permitem ver o céu e onde a luz do sol entra apenas por frestas pelas folhagens. A escuridão prevalece, e com ela a dúvida. Como no outro filme, uma chuva pesada está presente, permeando todo o filme, conferindo uma atmosfera desoladora aos sucessivos relatos de violência.
Os testemunhos dão às personagens que os escutam uma imagem cruel do mundo. No entanto, de repente, o ambiente em que se encontram é preenchido pelo choro de um bebê abandonado, que é acolhido por um dos homens ali presentes. “Tenho seis filhos. Um a mais não vai fazer diferença”, diz o homem.
O padre com quem o homem conversa agradece: “Graças a você, acho que posso manter a minha fé nos homens.” Após o gesto caridoso, a chuva é interrompida e é possível ver um pedaço do céu: das ruínas da desordem, surge um fragmento de esperança.
Assim como Rashomon, Viver (1952) também é uma espécie de investigação da alma humana.
No filme, acompanhamos a história do senhor Kanji Watanabe, que descobre ter pouco tempo de vida devido a uma grave doença. Após décadas passadas entre carimbos e papéis, tendo como única perspectiva de futuro a conservação de sua posição de burocrata, o Senhor Watanabe sentirá a necessidade de sair da inércia. Como diz o famoso verso do poeta alemão Rainer Maria Rilke: “Precisas mudar de vida”.
As primeiras horas após o diagnóstico são gastas na companhia de um artista que leva o Senhor Watanabe pelos meandros da noite de Tóquio. Os dois tentam preencher o vazio sentido pelo homem com uma ‘overdose’ de estímulos. Mas isso não é suficiente.
Há coisas a serem corrigidas e outras tantas a serem feitas. Como na novela A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, a proximidade do fim faz o protagonista refletir acerca das suas decisões, do que ficou pelo caminho e do que ele precisa fazer para que sua passagem pelo mundo não tenha sido em vão.
Na segunda parte do filme, uma elipse nos projeta para cinco meses adiante, quando, conforme indica a narração, o Senhor Watanabe morreu. Para a surpresa de muitos, o seu velório encontra-se cheio, incluindo a presença de repórteres.
Naquele intervalo de tempo, aconteceu algo para que aquele homem destinado a morrer no anonimato levasse tanta gente a sentir a sua falta. As pessoas presentes no velório iniciam um longo diálogo no qual, como em Rashomon, intercalam-se flashbacks, a fim de reconstruir os últimos meses de vida do Senhor Watanabe e tentar compreender as suas derradeiras motivações.
Elas deduzem que o Senhor Watanabe tinha consciência de que o tempo que lhe restava era relativamente curto. Percebem também que, em razão disso, ele decidiu utilizá-lo defendendo a construção de um singelo parque de diversão para as crianças numa região da cidade visada por gananciosos empresários, os quais ele precisou enfrentar. Ainda que não tivesse conseguido cumprir a tarefa, o Senhor Watanabe legou um exemplo valioso às pessoas: até o último momento, é possível lutar para conferir sentido à vida.
Quase trinta anos separam Viver de Kagemusha (1980).
Há vários contrastes entre os filmes: de um lado, a ambientação no Japão contemporâneo, o preto e branco, a narrativa intimista; do outro, o Japão do século XVI, as cores estonteantes, as escalas épicas das cenas com milhares de figurantes.
No entanto, em ambos os filmes persiste a reflexão sobre temas de ordem universal.
Em Kagemusha, o líder de um clã determina que as autoridades do reino não tornem a sua morte pública, ao menos pelos três anos seguintes. Nesse período, um sósia deverá substituí-lo. A todo instante, os responsáveis pela manutenção do segredo enfrentam novos obstáculos: espiões inimigos, o orgulho do substituto em abrir mão da própria identidade, sua dificuldade com atividades como domar um cavalo ou, simplesmente, passar incólume pelo olhar atento e intuitivo do neto do falecido líder.
Com Kagemusha, Kurosawa explora os vários artifícios empregados pelo homem na tentativa de ‘driblar’ a morte. Em Viver,a tomada de consciência do protagonista acerca da finitude permite ao cineasta refletir a respeito do valor da existência. Nos últimos minutos de Os sete samurais, após o combate bem sucedido, nós vemos surgir uma ambiguidade na fala de um dos ronins, que diz: “Não fomos nós os vencedores, mas os camponeses”.
À euforia daqueles que celebram a vitória opõem-se a melancolia dos que vão seguir vagando a esmo pelo mundo; encontrando um sentido para a vida apenas de tempos em tempos, quando novamente se depararem com mais uma batalha. Encontro que justifica a sua existência de samurais mas que, ao mesmo tempo, lhes coloca frente à morte.
A morte também atravessa Trono manchado de sangue (1957), considerado pelo crítico literário americano Harold Bloom como “a melhor adaptação cinematográfica de Macbeth”.
Trata-se de uma tragédia sobre aqueles que se acreditam capazes de ditar os rumos do destino, mas que acabam devorados pelas próprias ações.
Ainda no começo, nos deparamos com uma cena-chave: após dois combatentes ouvirem de uma entidade sobrenatural as premonições informando que ambos seriam líderes poderosos, eles se perdem no nevoeiro, cavalgando sem conseguir achar a direção.
Como em Rashomon, Os sete samurais ou Viver (lembremos da neve caindo sobre o Senhor Watanabe no balanço, como se fosse a celebração do seu instante de felicidade), Kurosawa utiliza elementos da natureza para sublinhar os temas de sua narrativa.
É assim que, em Trono manchado de sangue, logo após os personagens tomarem conhecimento do futuro, a neblina faz com que eles se percam no bosque. A branquidão preenche os enquadramentos, mostrando que, na verdade, os dois combatentes continuam cegos em relação à realidade, que desconhecem a origem de seus desejos e as consequências de realizá-los a qualquer custo.
Em síntese, podemos dizer que a filmografia de Kurosawa demonstrou uma forte compreensão das potencialidades do cinema para representar os mais complexos dramas humanos. Ele conseguiu ultrapassar barreiras geográficas e culturais e, com seu estilo marcante e com a profundidade filosófica de suas narrativas, alcançou uma dimensão universal.
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Nascido em 1910, na cidade de Tóquio, o japonês Akira Kurosawa se apaixonou pelos filmes ainda na infância.
Na juventude, Kurosawa trabalhou como assistente direção, roteiro e fotografia para importantes diretores e, em 1943, ele iniciou a sua prolífera carreira de cineasta.
Considerado o autor de clássicos absolutos, Kurosawa se tornou um dos mais conhecidos e celebrados cineastas do Japão e um dos mais influentes diretores da história do cinema mundial.
Os seus filmes apresentam personagens que se questionam a respeito do sentido da vida e da morte, da ética das ações boas e ruins e da relação entre o destino e as escolhas pessoais. Mas, para além dos temas, o diretor buscou fixar tais investigações na própria forma dos filmes.
No presente texto, apresentamos uma pequena análise da carreira do cineasta a partir de comentários a respeito de seus principais filmes.
Um grande exemplo das motivações de Kurosawa é Rashomon (1950). O filme foi o primeiro êxito internacional do cineasta, conferindo-lhe, inclusive, o Leão de Ouro no Festival de Veneza e o Oscar de melhor filme estrangeiro, feitos até então inéditos para o cinema japonês.
Rashomon mostra uma sucessão de depoimentos de diferentes personagens a respeito de um mesmo crime. A cada testemunha, as descrições dos eventos são apresentadas em flashbacks, que guardam entre si contradições extremamente relevantes.
De acordo com a versão que está sendo contada, muda-se a sequência dos fatos, as motivações por trás dos crimes, as vítimas e os culpados. Em vez de se tornarem progressivamente mais transparentes, os acontecimentos se mostram cada vez mais opacos aos nossos olhos.
A verdade e a mentira rapidamente tornam-se indiscerníveis, e o trágico evento se apresenta como um enigma cuja dificuldade de resolução simboliza a angústia humana diante dos inúmeros mistérios sem solução que existem na vida.
Uma característica marcante do cinema de Kurosawa é a utilização da natureza como metáfora. Em Os sete samurais (1954), uma chuva torrencial cai durante a batalha entre os camponeses, liderados pelos ronins recrutados para protegê-los, e os bandidos saqueadores que os ameaçam. A água preenche os quadros, os personagens caem em poças de lama, todos têm dificuldade para enxergar o que está acontecendo.
O mundo parece estar próximo do fim. Após a longa preparação a que o filme nos apresentou, é chegada a hora da verdade.
Em Rashomon, o crime irresolúvel, objeto da investigação, acontece no interior de uma floresta muito densa, cujas árvores quase não permitem ver o céu e onde a luz do sol entra apenas por frestas pelas folhagens. A escuridão prevalece, e com ela a dúvida. Como no outro filme, uma chuva pesada está presente, permeando todo o filme, conferindo uma atmosfera desoladora aos sucessivos relatos de violência.
Os testemunhos dão às personagens que os escutam uma imagem cruel do mundo. No entanto, de repente, o ambiente em que se encontram é preenchido pelo choro de um bebê abandonado, que é acolhido por um dos homens ali presentes. “Tenho seis filhos. Um a mais não vai fazer diferença”, diz o homem.
O padre com quem o homem conversa agradece: “Graças a você, acho que posso manter a minha fé nos homens.” Após o gesto caridoso, a chuva é interrompida e é possível ver um pedaço do céu: das ruínas da desordem, surge um fragmento de esperança.
Assim como Rashomon, Viver (1952) também é uma espécie de investigação da alma humana.
No filme, acompanhamos a história do senhor Kanji Watanabe, que descobre ter pouco tempo de vida devido a uma grave doença. Após décadas passadas entre carimbos e papéis, tendo como única perspectiva de futuro a conservação de sua posição de burocrata, o Senhor Watanabe sentirá a necessidade de sair da inércia. Como diz o famoso verso do poeta alemão Rainer Maria Rilke: “Precisas mudar de vida”.
As primeiras horas após o diagnóstico são gastas na companhia de um artista que leva o Senhor Watanabe pelos meandros da noite de Tóquio. Os dois tentam preencher o vazio sentido pelo homem com uma ‘overdose’ de estímulos. Mas isso não é suficiente.
Há coisas a serem corrigidas e outras tantas a serem feitas. Como na novela A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, a proximidade do fim faz o protagonista refletir acerca das suas decisões, do que ficou pelo caminho e do que ele precisa fazer para que sua passagem pelo mundo não tenha sido em vão.
Na segunda parte do filme, uma elipse nos projeta para cinco meses adiante, quando, conforme indica a narração, o Senhor Watanabe morreu. Para a surpresa de muitos, o seu velório encontra-se cheio, incluindo a presença de repórteres.
Naquele intervalo de tempo, aconteceu algo para que aquele homem destinado a morrer no anonimato levasse tanta gente a sentir a sua falta. As pessoas presentes no velório iniciam um longo diálogo no qual, como em Rashomon, intercalam-se flashbacks, a fim de reconstruir os últimos meses de vida do Senhor Watanabe e tentar compreender as suas derradeiras motivações.
Elas deduzem que o Senhor Watanabe tinha consciência de que o tempo que lhe restava era relativamente curto. Percebem também que, em razão disso, ele decidiu utilizá-lo defendendo a construção de um singelo parque de diversão para as crianças numa região da cidade visada por gananciosos empresários, os quais ele precisou enfrentar. Ainda que não tivesse conseguido cumprir a tarefa, o Senhor Watanabe legou um exemplo valioso às pessoas: até o último momento, é possível lutar para conferir sentido à vida.
Quase trinta anos separam Viver de Kagemusha (1980).
Há vários contrastes entre os filmes: de um lado, a ambientação no Japão contemporâneo, o preto e branco, a narrativa intimista; do outro, o Japão do século XVI, as cores estonteantes, as escalas épicas das cenas com milhares de figurantes.
No entanto, em ambos os filmes persiste a reflexão sobre temas de ordem universal.
Em Kagemusha, o líder de um clã determina que as autoridades do reino não tornem a sua morte pública, ao menos pelos três anos seguintes. Nesse período, um sósia deverá substituí-lo. A todo instante, os responsáveis pela manutenção do segredo enfrentam novos obstáculos: espiões inimigos, o orgulho do substituto em abrir mão da própria identidade, sua dificuldade com atividades como domar um cavalo ou, simplesmente, passar incólume pelo olhar atento e intuitivo do neto do falecido líder.
Com Kagemusha, Kurosawa explora os vários artifícios empregados pelo homem na tentativa de ‘driblar’ a morte. Em Viver,a tomada de consciência do protagonista acerca da finitude permite ao cineasta refletir a respeito do valor da existência. Nos últimos minutos de Os sete samurais, após o combate bem sucedido, nós vemos surgir uma ambiguidade na fala de um dos ronins, que diz: “Não fomos nós os vencedores, mas os camponeses”.
À euforia daqueles que celebram a vitória opõem-se a melancolia dos que vão seguir vagando a esmo pelo mundo; encontrando um sentido para a vida apenas de tempos em tempos, quando novamente se depararem com mais uma batalha. Encontro que justifica a sua existência de samurais mas que, ao mesmo tempo, lhes coloca frente à morte.
A morte também atravessa Trono manchado de sangue (1957), considerado pelo crítico literário americano Harold Bloom como “a melhor adaptação cinematográfica de Macbeth”.
Trata-se de uma tragédia sobre aqueles que se acreditam capazes de ditar os rumos do destino, mas que acabam devorados pelas próprias ações.
Ainda no começo, nos deparamos com uma cena-chave: após dois combatentes ouvirem de uma entidade sobrenatural as premonições informando que ambos seriam líderes poderosos, eles se perdem no nevoeiro, cavalgando sem conseguir achar a direção.
Como em Rashomon, Os sete samurais ou Viver (lembremos da neve caindo sobre o Senhor Watanabe no balanço, como se fosse a celebração do seu instante de felicidade), Kurosawa utiliza elementos da natureza para sublinhar os temas de sua narrativa.
É assim que, em Trono manchado de sangue, logo após os personagens tomarem conhecimento do futuro, a neblina faz com que eles se percam no bosque. A branquidão preenche os enquadramentos, mostrando que, na verdade, os dois combatentes continuam cegos em relação à realidade, que desconhecem a origem de seus desejos e as consequências de realizá-los a qualquer custo.
Em síntese, podemos dizer que a filmografia de Kurosawa demonstrou uma forte compreensão das potencialidades do cinema para representar os mais complexos dramas humanos. Ele conseguiu ultrapassar barreiras geográficas e culturais e, com seu estilo marcante e com a profundidade filosófica de suas narrativas, alcançou uma dimensão universal.
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