Uma jornada das trevas à luz: “Barrabás”, de Richard Fleischer

Na primeira metade do século XX, um dos gêneros de maior sucesso em Hollywood foi o dos épicos históricos.

Elencos gigantescos, cenários majestosos e produções milionárias resultaram em filmes como Quo Vadis (1951), Guerra e Paz (1956) e Ben-Hur (1959).

Nesse contexto, seria natural que os estúdios realizassem filmes que contassem aquela que, de acordo com o título de um desses épicos, é a “maior história de todos os tempos”: a da vida e paixão de Jesus Cristo.

Alguns desses filmes, como Rei dos Reis (1961) e o já referido A maior história de todos os tempos (1965) tratam diretamente da vida de Cristo e dos eventos da Paixão. Outros, porém, criam ficções ambientadas no mesmo contexto histórico, mas que mostram como a vida de outros personagens fora afetada pela vida de Cristo.

Entre esses, há um clássico injustamente esquecido pela maior parte do público: Barrabás (1961), de Richard Fleischer.

Embora seja pouco comentado, esse é um dos melhores filmes do período e um dos grandes filmes da história do cinema.

O renascimento

Adaptado do livro homônimo do vencedor do Nobel Pär Lagerkvist, o filme cria uma história que nos faz imaginar o que teria acontecido a Barrabás, bandido que, a pedido da multidão interrogada pelo governador da Judeia Pôncio Pilatos — e seguindo a tradição judaica de libertar um prisioneiro durante a Páscoa — fora libertado no lugar de Jesus Cristo.

Cristo morreu pela redenção da humanidade. Barrabás sente isso de modo concreto e imediato em sua vida; pois, no seu caso, Jesus morreu literalmente em seu lugar.

A crucificação de Cristo e o eclipse real captado por Richard Fleischer

A partir desse fato, acompanhamos a progressiva transformação do coração de Barrabás. Ele começa a se perguntar o porquê daquele homem inocente ter morrido em seu lugar, uma vez que ele, Barrabás, era um homem cheio de culpa e de pecados.

Além disso, Barrabás também entra em contato com alguns discípulos de Cristo — notadamente Pedro, Lázaro e a personagem Rachel, vivida no filme pela atriz Silvana Mangano — e a fé dessas pessoas vai colocando mais dúvidas em sua consciência, o que lhe motiva a buscar por respostas para suas interrogações.

O encontro entre Barrabás e o ressuscitado Lázaro

Richard Fleischer estava frente a um grande desafio no que diz respeito à representação da transformação espiritual de Barrabás: o personagem era analfabeto, uma pessoa embrutecida pela dureza da vida e, por esse motivo, tinha muita dificuldade para expressar seus próprios sentimentos e sua vida interior como um todo.

Como expressar a vida interior de um personagem que não consegue expressá-la por si mesmo?

É aí que entra a arte do cinema e as soluções magistrais encontradas por Fleischer. A sua capacidade de empregar os recursos cinematográficos de maneira muito inteligente.

A jornada de Barrabás

O processo de conversão de Barrabás não é expresso apenas pelas ações que o personagem pratica ou pelas palavras que ele profere. Todos os elementos da arte do cinema contribuem para ilustrar o seu “mundo” interior: a atuação de Anthony Quinn, o modo de construção das cenas, a relação entre uma cena e outra e o desenvolvimento narrativo como um todo.

Por exemplo: na primeira sequência do filme, depois de Pilatos ter proposto ao povo a votação para ver qual prisioneiro deveria ser libertado (Jesus ou Barrabás), Barrabás sai de sua masmorra e, como ficara muito tempo nas sombras, seus olhos são ofuscados pela luz do sol.

Nesse mesmo momento, sua visão depara-se com Cristo que, ao contrário do nosso protagonista — que acabou de ganhar sua liberdade —, está indo em direção ao calvário. Na composição criada por Fleischer, a luz que ofusca os olhos de Barrabás vem direto do rosto de Cristo.

A luz que ofusca os olhos de Barrabás

Ao sair da Masmorra, Barrabás diz: “Não gosto da luz. Ela nos ‘prega peças’”. No momento em que a frase é dita, ela é apenas a interjeição de um homem que ficou muito tempo nas sombras e sai de repente para um espaço iluminado. Mas, no contexto da história completa, a frase simboliza o percurso pelo qual passará a alma de Barrabás: a princípio, a luz da verdade é ofuscante, intensa demais para que seja facilmente assimilada. Leva tempo para que os olhos acostumados às sombras acostumem-se com ela. Assim como leva algum tempo para que a alma de Barrabás encontre o caminho da luz.

Essa harmonia entre o que está sendo expresso e a maneira como as cenas são construídas está presente no filme todo.

Barrabás e a condição humana

Naturalmente, a jornada das trevas à luz empreendida por Barrabás é repleta de obstáculos. Embora seja um personagem que possui uma capacidade limitada de pensamento e de expressão verbal, ele apresenta uma complexidade interior que Fleischer consegue captar muito bem.

Do início ao fim, Barrabás é um personagem que está lutando consigo mesmo, com a dúvida e com a dureza do seu próprio coração — pois fora embrutecido pelas duras circunstâncias da sua vida.

De fato, esse é um ponto muito importante: ao imaginar o que teria acontecido a Barrabás após a morte e a ressurreição de Cristo, tanto Lagerkvist quanto Fleischer optaram pela abordagem menos simplista possível. Assim, o caráter a as más ações de Barrabás não são encarados de maneira maniqueísta. A sua luta interior demonstra como ele é essencialmente humano.

É por isso que essa jornada das trevas à luz pode ser encarada como um símbolo da história de todos os homens. Pois, independentemente do grau de maldade das ações de Barrabás, a sua luta interior reflete a luta de todo ser humano, em que a fé precisa ser diariamente cultivada e fortalecida.

Além disso, a jornada de Barrabás demonstra que a fé não isenta ninguém da fraqueza e da ignorância. Após a sua conversão — quando, metaforicamente, seus olhos já haviam se acostumado com a luz — Barrabás se deixa enganar por o que ele pensa ser um chamado divino, mas que na verdade é apenas um reflexo do seu próprio desespero: a participação no incêndio de Roma.

Contudo, longe de diminuir o personagem, essa ação o engrandece ainda mais. Pois demonstra que ele crê com a mesma força com a qual duvidava. É uma expressão da sua sinceridade, característica que também está presente na forma do filme de Fleischer.

Uma narrativa cheia de vida

O que contribui para a qualidade de Barrabás e faz com que ele seja um filme singular dentro da história do cinema e, particularmente, dentro do gênero em que está inscrito (dos épicos bíblicos) é o desenvolvimento orgânico da narrativa.

Assim como o desenvolvimento da consciência de Barrabás acontece mediante uma luta constante com a dúvida, a estrutura do filme de Fleischer também não é impositiva — os fatos não são narrados para ilustrar e impor uma ideia ao espectador. Eles acontecem numa sucessão quase natural.

Barrabás é ridicularizado no treinamento dos gladiadores

Em geral, os filmes são construídos a partir de blocos narrativos (chamados de cenas ou de sequências), cada um possuindo seu próprio início, meio e fim. Tal estrutura está presente em Barrabás, mas ela se desenvolve de modo orgânico: as cenas do filme não são concluídas; são invadidas por um acontecimento que transcende o instante que está sendo descrito.

Além disso, diferente da narrativa hollywoodiana clássica, em que as ações do personagem provocam consequências que movimentam a história, em Barrabás o personagem principal quase sempre é obrigado a lidar com as circunstâncias que estão além de suas escolhas.  

É assim do início ao fim do filme: conhecemos Barrabás na masmorra, de onde ele é retirado porque o povo resolveu libertá-lo. Essa liberdade implica a morte de Cristo, acontecimento que, além de provocar uma reação cósmica no universo — ilustrada pelo eclipse real captado por Fleischer — provoca também uma profunda transformação interior em Barrabás (assim como a mensagem do Cristo já havia transformado a personagem Rachel, antiga amante do bandido).

Por sua vez, essa transformação o obriga a mudar de vida e a mudança empreendida o leva à prisão.

Preso, Barrabás descobre uma maneira de sobreviver às péssimas condições das minas de enxofre (sua resignação e sua capacidade de sobrevivência não são menos intensas do que a sua capacidade de crer e de duvidar), lugar de onde é libertado por causa de um desastre natural — mais um acontecimento que está além das suas escolhas.

A sinceridade de Barrabás

Então ele conhece Sahak (personagem que ganha vida na belíssima interpretação de Vitorio Gassman), o qual, ao contrário de Barrabás, nunca esteve próximo de Cristo, mas possui uma fé muito maior do que a de Barrabás. Sahak não tem a mesma força que Barrabás, mas sua constituição frágil não faz com que ele tema a morte. Sua fé é maior do que o seu medo. E assim ele se transforma em mais um dos discípulos que ajudam Barrabás em seu processo de conversão. A fé de Sahak alimenta a fé posterior de Barrabás.

Tendo sobrevivido várias vezes à morte iminente, Barrabás vira um símbolo da sobrevivência. Sua fama o leva a Roma, ao Coliseu, às batalhas de gladiadores. Assim, mais uma vez ele é movido por circunstâncias que ele não pode controlar.

Esse encadeamento de causas que estão além da vontade do protagonista e do instante que está sendo imediatamente narrado faz com que o filme adquira uma intensidade e uma verdade que poucas vezes são encontradas no cinema. É algo raro de verdade.

Além disso, tal desenvolvimento narrativo é uma característica que está em harmonia com a psicologia de Barrabás. Como dito anteriormente, ele só pode crer intensamente porque duvidou na mesma medida. Em todos os seus atos, na crença e na dúvida, ele se entregou inteiramente, com sinceridade.

O mesmo acontece com a câmera de Fleischer ao mostrar a vida desse personagem que, em sua emocionante jornada de conversão, soube retratar — também de modo muito raro — a escuridão e o anseio pela luz que existem no coração de todos os homens.

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