O cinema como misericórdia
Por Rodrigo Simonsen
|
10.abr.2025
Midle Dot

Aprender a enxergar é o exercício mais exigente de todos.

Ver é fácil. Ver, qualquer um é capaz. Enxergar, não.

Enxergar exige uma vida inteira de experiências, e tropeços, e desejos, e dores, que formam aquilo que chamamos de personalidade e formam também aquilo que deveríamos chamar de pessoa, com sua densidade, seu estofo, sua complexidade e suas camadas que ganham em riqueza na medida em que marcham rumo ao fundo de nosso ser.

Temos muitas chances de exercitar esse músculo metafísico, que exige tanto de nós, e a arte pode nos proporcionar experiências condensadas de encontro com o diferente, experiências de alteridade difíceis de serem levadas a cabo num dia a dia de rotina repetição.

O cinema, com suas histórias e seus tipos infinitamente variados, pode entregar essa possibilidade de uma maneira muito privilegiada. Um bom filme, mais do que ser visto, pode ser enxergado — ou deve ser enxergado.

Vale o teste: antes de julgar, antes de condenar, antes de apontar o dedo para qualquer personagem, nosso exercício deve ser o de tentar experimentar o outro, o singular, aquele que não é quem nós somos e, por isso mesmo, pode enriquecer quem já somos, seja como exemplo, seja como contra-exemplo.

Nesse movimento — e é aqui que surge minha tese —, temos a chance de experimentar um pouquinho da misericórdia divina. E de qual maneira? Tornando-nos pessoas mais sensíveis às fragilidades dos outros que, tocados por elas, podemos agir para seu alívio no mundo real, mas também como pessoas que, diante da pequenez alheia, percebemos que nossa pequenez não está muito distante e somos igualmente necessitados de uma misericórdia que mal podemos compreender. 

Nesse sentido, o cinema pode ser sacramental. Não no rigor técnico da teologia, por óbvio, mas em sua acepção mais profunda: a do sacramento como um sinal visível de uma graça invisível. Filmes que não nos salvam, mas apontam um caminho. Filmes que não nos redimem, mas preparam o coração. Filmes que, ao invés de expor a miséria humana ao ridículo, a contemplam com respeito — porque sabem que é ali que a graça costuma germinar.

E se a misericórdia é justamente o sofrimento do coração diante da miséria alheia, como ensinou Santo Tomás de Aquino, então há filmes que são misericordiosos não por dizerem frases bonitas, mas por fazerem nosso coração sofrer junto. Sem apelar. Sem manipular. Sem forçar lágrimas. Apenas mostrando, com delicadeza e verdade, que aquela dor, às vezes tão distante, também pode ser a nossa. Que aquele pecado, às vezes tão distante, também pode ser o nosso. Que aquele humano, às vezes tão distante, também pode ser você.

1. A misericórdia como forma de enxergar

Entre todas as virtudes que a fé cristã exalta, talvez nenhuma seja tão escandalosa quanto a misericórdia. Ela rompe a lógica do merecimento. Desarma o impulso do julgamento. Interrompe o curso da condenação.

A misericórdia não é um sentimento de pena, nem um gesto moralmente superior. É um modo de enxergar o outro. De ver não apenas o que ele é, mas o que ele pode se tornar. De olhar para alguém caído e não enxergar um fracasso, mas uma possibilidade de recomeço. É isso que faz de Deus, no cristianismo, um Pai e não apenas um juiz. Um Pai que corre ao encontro, que se inclina, que se deixa tocar — mesmo por quem não tem mãos limpas.

O Papa Francisco escreveu que a misericórdia “é o bilhete de identidade do nosso Deus”. Já o Papa Bento XVI afirmou que ela “é a palavra-chave da ação de Deus com o homem”. Não estamos falando, portanto, de algo secundário. Misericórdia não é adereço — é essência. É por meio dela que Deus enxerga. E o olhar de Deus é sempre um escândalo para o olhar humano, porque insiste em ver graça onde a maioria só vê culpa.

Tomás de Aquino afirmava que a misericórdia nasce da abundância do bem. Ela não contradiz a justiça, mas a cumpre de modo mais alto, mais pleno, mais fecundo. Enquanto a justiça mede, a misericórdia ultrapassa. Onde a justiça diz “até aqui”, a misericórdia diz “ainda assim”.

Mas enxergar com misericórdia não é fácil. Exige um outro tipo de visão, mais interior, mais profunda, mais arriscada. Exige um desprendimento do olhar moralista, uma renúncia à pressa de diagnosticar. Requer o tempo da compaixão, o silêncio da escuta, a disposição de entrar na dor do outro sem o desejo de vencê-la com respostas rápidas. A misericórdia não salva pelo raciocínio — salva pela presença.

É por isso que ela é tão difícil de viver. Porque ela obriga a enxergar o outro não com os olhos da razão ou da reputação, mas com os olhos do coração.

Todo ato de misericórdia autêntica nasce desse tipo de olhar. E é isso que aproxima a misericórdia da arte — e, de modo especial, do cinema. Porque o cinema, quando é verdadeiro, também exige que enxerguemos. E não apenas a história ou o personagem. Mas o humano por trás da ficção. A dor por trás da trama. A pergunta por trás da imagem.

O cinema não é misericordioso porque nos conforta. Ele é misericordioso quando nos ensina a enxergar.

2. A dor do outro como revelação da própria miséria

Não é fácil enxergar a dor do outro. Ela nos desconcerta porque nos obriga a encarar uma verdade profundamente incômoda: somos todos frágeis. Estamos a um passo do colapso. Habitamos um território comum, onde a ruína não só é possível, mas inevitável.

Talvez por isso, em grande parte do tempo, nos defendemos. Evitamos os olhos aflitos. Mudamos de assunto. Preferimos o espetáculo à verdade. Assistimos a tragédias como se fossem ficções, e às ficções como se não tivessem nada a nos dizer. E ainda assim, quando a dor vem — seja através de um encontro real, seja pela janela de um filme —, algo dentro de nós cede. Porque a dor reconhece a dor.

A compaixão não nasce da superioridade. Nasce do reconhecimento. E aqui a misericórdia se revela em toda sua força: quando, ao enxergar a miséria do outro, deixamos cair nossas defesas e admitimos, em silêncio, que nossa própria miséria não está muito distante.

É isso que torna a misericórdia tão potente quanto incômoda. Ela revela. E o que ela revela é que somos todos necessitados — de perdão, de sentido, de amor, de salvação. A dor do outro, quando verdadeiramente contemplada, não nos afasta. Nos desmascara. Nos irmana. Nos torna humanos de novo.

Isso não acontece com qualquer dor. Só a dor verdadeiramente enxergada tem esse poder. Aquela que é escutada sem pressa, acompanhada sem pressões, acolhida sem filtros morais. E é justamente essa dor — densa, particular, intransferível — que o cinema, em sua melhor forma, consegue apresentar.

É o que acontece, por exemplo, em Viver, de Akira Kurosawa. O protagonista é um homem comum, um funcionário público apagado, que passa décadas carimbando papéis sem jamais tocar verdadeiramente a vida de ninguém — nem a sua. Ao descobrir que está com uma doença terminal, ele não reage com revolta ou grandiosidade. Apenas acorda. Acorda tarde, sim, mas acorda. E então tenta, de forma quase patética, encontrar sentido para seus dias restantes. Ele não se converte em herói. Não faz discursos. Apenas escolhe, com delicadeza e insistência, deixar algo bom no mundo antes de partir. E é justamente essa modéstia do gesto que nos desarma. Porque ela fala de nós. De tudo o que adiamos. De tudo o que deixamos para depois. E nos mostra, com uma misericórdia silenciosa, que talvez ainda haja tempo.

Também em Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson, somos confrontados com um tipo de sofrimento que não grita, mas consome. O jovem sacerdote vive isolado numa vila indiferente e hostil. Ele tenta amar, tenta servir, tenta evangelizar — mas tudo em torno dele parece dizer “não”. Aos poucos, seu corpo adoece, seu espírito se esgota, sua fé se desidrata. Ele escreve, silenciosamente, tudo isso em seu diário, como quem deixa rastros num deserto. E é ali, naquele espaço quase vazio, que a graça aparece. Não como resposta, mas como presença. O espectador que acompanha esse percurso não sai com lições prontas, mas com algo mais raro: uma reverência. A dor daquele homem não é explicada, nem resolvida — mas é digna. E digna porque enxergada com ternura. Como a misericórdia faz.

É por isso que a dor, quando acolhida com misericórdia, não oprime. Liberta. Ela nos mostra que não estamos sozinhos. Que ser fraco não é falha de caráter. Que sofrer não é vergonha. Que ser humano é também sangrar — e que há beleza, até uma chance de santidade, em quem sangra com distinção.

Santo Isaac, o Sírio, dizia que “o coração misericordioso arde por toda a criação”. E que um verdadeiro homem de compaixão “chora por todas as criaturas, mesmo pelas serpentes”. A misericórdia, então, não é seletiva. Não é calculada. Ela transborda. E só transborda quem foi, um dia, atravessado pela dor. A sua ou a de alguém.

O cinema, quando nos coloca diante de uma dor real — ainda que fictícia — pode ser esse lugar de travessia. Um espelho quebrado, que reflete em pedaços aquilo que tentamos esconder. E que, justamente por isso, pode nos ajudar a nos ver com mais clareza. E mais ternura.

3. A graça escondida na miséria

A lógica da misericórdia é ilógica. Ela não premia os virtuosos. Não favorece os fortes. Não se submete ao equilíbrio das trocas. Ela age onde menos se espera e, muitas vezes, age quando tudo parece já perdido.

É por isso que a graça quase sempre escapa aos olhos apressados. Ela não se impõe. Ela se esconde.

Essa é, talvez, a realidade mais difícil de aceitar: a de que Deus não se manifesta onde tudo está limpo, arrumado e funcional, mas justamente onde há fracasso, dor, desordem, miséria. Onde o mundo só enxerga ruína, Deus planta redenção.

“Tudo é graça”, escreveu Bernanos na boca de sua personagem mais doente, mais frágil, mais silenciosa — o cura de Ambricourt. E esse “tudo” não é uma generalização otimista. É uma rendição. Uma confissão de que não compreendemos a lógica de Deus, mas confiamos nela. E que mesmo aquilo que parece inútil, obscuro, falido — uma vida desperdiçada, um gesto não reconhecido, uma bondade ignorada — tudo isso pode estar carregado de sentido. Tudo isso pode ser semente.

O cinema, quando é verdadeiro, às vezes nos permite vislumbrar essa semente. Um personagem que falha o tempo todo, mas ama no fim. Uma história que não termina com glória, mas com humildade. Uma narrativa que não redime com espetáculo, mas com silêncio.

Por exemplo, em Farrapo Humano, o protagonista é um alcoólatra que mergulha em espirais cada vez mais escuras. Nada é aliviado. Nada é suavizado. Mas, mesmo ali, mesmo naquela degradação, o filme nos oferece lampejos de dignidade. Um desejo de vida, ainda que tímido. Um resquício de beleza. Uma mão estendida. Uma possível saída. E é disso que a graça é feita: de possibilidades improváveis.

A graça escondida na miséria não justifica o sofrimento. Mas o redime. Ela não transforma a dor em algo bom — mas em algo fecundo. E isso só é possível porque existe um Deus que escolhe ser misericordioso. Um Deus que não se assusta com nossas quedas, não se cansa das nossas repetições, não se recusa a caminhar conosco mesmo quando andamos em círculos.

O cinema, quando se aproxima dessa experiência, não se torna religioso no sentido formal. Mas se torna sagrado no sentido mais puro: ele se transforma em espaço onde a humanidade pode respirar sem medo, onde a dor pode existir sem ser descartada, onde a salvação pode começar como uma intuição sutil, no meio do caos.

Assistir a um filme, então, pode ser mais do que entretenimento. Pode ser um exercício espiritual. Um ensaio para a compaixão. Um lugar onde Deus, que se comunica também através das histórias humanas, se aproxima de nós não com mandamentos, mas com imagens. Com cenas que acolhem. Com silêncios que escutam. Com personagens que falham — e mesmo assim nos comovem.

Porque a misericórdia é isso: um modo de enxergar como Deus. Sem medo da ferida. Sem pressa pela cura. Sem exigência de perfeição. Apenas presença e um amor que não desiste.

Talvez seja por isso que alguns filmes ficam conosco por anos. Porque eles não nos  disseram uma verdade. Eles nos ensinaram a vê-la. Ou melhor: a enxergá-la. E uma vez que enxergamos, já não somos os mesmos, porque enxergar com misericórdia é começar a amar com os olhos.

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Aprender a enxergar é o exercício mais exigente de todos.

Ver é fácil. Ver, qualquer um é capaz. Enxergar, não.

Enxergar exige uma vida inteira de experiências, e tropeços, e desejos, e dores, que formam aquilo que chamamos de personalidade e formam também aquilo que deveríamos chamar de pessoa, com sua densidade, seu estofo, sua complexidade e suas camadas que ganham em riqueza na medida em que marcham rumo ao fundo de nosso ser.

Temos muitas chances de exercitar esse músculo metafísico, que exige tanto de nós, e a arte pode nos proporcionar experiências condensadas de encontro com o diferente, experiências de alteridade difíceis de serem levadas a cabo num dia a dia de rotina repetição.

O cinema, com suas histórias e seus tipos infinitamente variados, pode entregar essa possibilidade de uma maneira muito privilegiada. Um bom filme, mais do que ser visto, pode ser enxergado — ou deve ser enxergado.

Vale o teste: antes de julgar, antes de condenar, antes de apontar o dedo para qualquer personagem, nosso exercício deve ser o de tentar experimentar o outro, o singular, aquele que não é quem nós somos e, por isso mesmo, pode enriquecer quem já somos, seja como exemplo, seja como contra-exemplo.

Nesse movimento — e é aqui que surge minha tese —, temos a chance de experimentar um pouquinho da misericórdia divina. E de qual maneira? Tornando-nos pessoas mais sensíveis às fragilidades dos outros que, tocados por elas, podemos agir para seu alívio no mundo real, mas também como pessoas que, diante da pequenez alheia, percebemos que nossa pequenez não está muito distante e somos igualmente necessitados de uma misericórdia que mal podemos compreender. 

Nesse sentido, o cinema pode ser sacramental. Não no rigor técnico da teologia, por óbvio, mas em sua acepção mais profunda: a do sacramento como um sinal visível de uma graça invisível. Filmes que não nos salvam, mas apontam um caminho. Filmes que não nos redimem, mas preparam o coração. Filmes que, ao invés de expor a miséria humana ao ridículo, a contemplam com respeito — porque sabem que é ali que a graça costuma germinar.

E se a misericórdia é justamente o sofrimento do coração diante da miséria alheia, como ensinou Santo Tomás de Aquino, então há filmes que são misericordiosos não por dizerem frases bonitas, mas por fazerem nosso coração sofrer junto. Sem apelar. Sem manipular. Sem forçar lágrimas. Apenas mostrando, com delicadeza e verdade, que aquela dor, às vezes tão distante, também pode ser a nossa. Que aquele pecado, às vezes tão distante, também pode ser o nosso. Que aquele humano, às vezes tão distante, também pode ser você.

1. A misericórdia como forma de enxergar

Entre todas as virtudes que a fé cristã exalta, talvez nenhuma seja tão escandalosa quanto a misericórdia. Ela rompe a lógica do merecimento. Desarma o impulso do julgamento. Interrompe o curso da condenação.

A misericórdia não é um sentimento de pena, nem um gesto moralmente superior. É um modo de enxergar o outro. De ver não apenas o que ele é, mas o que ele pode se tornar. De olhar para alguém caído e não enxergar um fracasso, mas uma possibilidade de recomeço. É isso que faz de Deus, no cristianismo, um Pai e não apenas um juiz. Um Pai que corre ao encontro, que se inclina, que se deixa tocar — mesmo por quem não tem mãos limpas.

O Papa Francisco escreveu que a misericórdia “é o bilhete de identidade do nosso Deus”. Já o Papa Bento XVI afirmou que ela “é a palavra-chave da ação de Deus com o homem”. Não estamos falando, portanto, de algo secundário. Misericórdia não é adereço — é essência. É por meio dela que Deus enxerga. E o olhar de Deus é sempre um escândalo para o olhar humano, porque insiste em ver graça onde a maioria só vê culpa.

Tomás de Aquino afirmava que a misericórdia nasce da abundância do bem. Ela não contradiz a justiça, mas a cumpre de modo mais alto, mais pleno, mais fecundo. Enquanto a justiça mede, a misericórdia ultrapassa. Onde a justiça diz “até aqui”, a misericórdia diz “ainda assim”.

Mas enxergar com misericórdia não é fácil. Exige um outro tipo de visão, mais interior, mais profunda, mais arriscada. Exige um desprendimento do olhar moralista, uma renúncia à pressa de diagnosticar. Requer o tempo da compaixão, o silêncio da escuta, a disposição de entrar na dor do outro sem o desejo de vencê-la com respostas rápidas. A misericórdia não salva pelo raciocínio — salva pela presença.

É por isso que ela é tão difícil de viver. Porque ela obriga a enxergar o outro não com os olhos da razão ou da reputação, mas com os olhos do coração.

Todo ato de misericórdia autêntica nasce desse tipo de olhar. E é isso que aproxima a misericórdia da arte — e, de modo especial, do cinema. Porque o cinema, quando é verdadeiro, também exige que enxerguemos. E não apenas a história ou o personagem. Mas o humano por trás da ficção. A dor por trás da trama. A pergunta por trás da imagem.

O cinema não é misericordioso porque nos conforta. Ele é misericordioso quando nos ensina a enxergar.

2. A dor do outro como revelação da própria miséria

Não é fácil enxergar a dor do outro. Ela nos desconcerta porque nos obriga a encarar uma verdade profundamente incômoda: somos todos frágeis. Estamos a um passo do colapso. Habitamos um território comum, onde a ruína não só é possível, mas inevitável.

Talvez por isso, em grande parte do tempo, nos defendemos. Evitamos os olhos aflitos. Mudamos de assunto. Preferimos o espetáculo à verdade. Assistimos a tragédias como se fossem ficções, e às ficções como se não tivessem nada a nos dizer. E ainda assim, quando a dor vem — seja através de um encontro real, seja pela janela de um filme —, algo dentro de nós cede. Porque a dor reconhece a dor.

A compaixão não nasce da superioridade. Nasce do reconhecimento. E aqui a misericórdia se revela em toda sua força: quando, ao enxergar a miséria do outro, deixamos cair nossas defesas e admitimos, em silêncio, que nossa própria miséria não está muito distante.

É isso que torna a misericórdia tão potente quanto incômoda. Ela revela. E o que ela revela é que somos todos necessitados — de perdão, de sentido, de amor, de salvação. A dor do outro, quando verdadeiramente contemplada, não nos afasta. Nos desmascara. Nos irmana. Nos torna humanos de novo.

Isso não acontece com qualquer dor. Só a dor verdadeiramente enxergada tem esse poder. Aquela que é escutada sem pressa, acompanhada sem pressões, acolhida sem filtros morais. E é justamente essa dor — densa, particular, intransferível — que o cinema, em sua melhor forma, consegue apresentar.

É o que acontece, por exemplo, em Viver, de Akira Kurosawa. O protagonista é um homem comum, um funcionário público apagado, que passa décadas carimbando papéis sem jamais tocar verdadeiramente a vida de ninguém — nem a sua. Ao descobrir que está com uma doença terminal, ele não reage com revolta ou grandiosidade. Apenas acorda. Acorda tarde, sim, mas acorda. E então tenta, de forma quase patética, encontrar sentido para seus dias restantes. Ele não se converte em herói. Não faz discursos. Apenas escolhe, com delicadeza e insistência, deixar algo bom no mundo antes de partir. E é justamente essa modéstia do gesto que nos desarma. Porque ela fala de nós. De tudo o que adiamos. De tudo o que deixamos para depois. E nos mostra, com uma misericórdia silenciosa, que talvez ainda haja tempo.

Também em Diário de um Pároco de Aldeia, de Robert Bresson, somos confrontados com um tipo de sofrimento que não grita, mas consome. O jovem sacerdote vive isolado numa vila indiferente e hostil. Ele tenta amar, tenta servir, tenta evangelizar — mas tudo em torno dele parece dizer “não”. Aos poucos, seu corpo adoece, seu espírito se esgota, sua fé se desidrata. Ele escreve, silenciosamente, tudo isso em seu diário, como quem deixa rastros num deserto. E é ali, naquele espaço quase vazio, que a graça aparece. Não como resposta, mas como presença. O espectador que acompanha esse percurso não sai com lições prontas, mas com algo mais raro: uma reverência. A dor daquele homem não é explicada, nem resolvida — mas é digna. E digna porque enxergada com ternura. Como a misericórdia faz.

É por isso que a dor, quando acolhida com misericórdia, não oprime. Liberta. Ela nos mostra que não estamos sozinhos. Que ser fraco não é falha de caráter. Que sofrer não é vergonha. Que ser humano é também sangrar — e que há beleza, até uma chance de santidade, em quem sangra com distinção.

Santo Isaac, o Sírio, dizia que “o coração misericordioso arde por toda a criação”. E que um verdadeiro homem de compaixão “chora por todas as criaturas, mesmo pelas serpentes”. A misericórdia, então, não é seletiva. Não é calculada. Ela transborda. E só transborda quem foi, um dia, atravessado pela dor. A sua ou a de alguém.

O cinema, quando nos coloca diante de uma dor real — ainda que fictícia — pode ser esse lugar de travessia. Um espelho quebrado, que reflete em pedaços aquilo que tentamos esconder. E que, justamente por isso, pode nos ajudar a nos ver com mais clareza. E mais ternura.

3. A graça escondida na miséria

A lógica da misericórdia é ilógica. Ela não premia os virtuosos. Não favorece os fortes. Não se submete ao equilíbrio das trocas. Ela age onde menos se espera e, muitas vezes, age quando tudo parece já perdido.

É por isso que a graça quase sempre escapa aos olhos apressados. Ela não se impõe. Ela se esconde.

Essa é, talvez, a realidade mais difícil de aceitar: a de que Deus não se manifesta onde tudo está limpo, arrumado e funcional, mas justamente onde há fracasso, dor, desordem, miséria. Onde o mundo só enxerga ruína, Deus planta redenção.

“Tudo é graça”, escreveu Bernanos na boca de sua personagem mais doente, mais frágil, mais silenciosa — o cura de Ambricourt. E esse “tudo” não é uma generalização otimista. É uma rendição. Uma confissão de que não compreendemos a lógica de Deus, mas confiamos nela. E que mesmo aquilo que parece inútil, obscuro, falido — uma vida desperdiçada, um gesto não reconhecido, uma bondade ignorada — tudo isso pode estar carregado de sentido. Tudo isso pode ser semente.

O cinema, quando é verdadeiro, às vezes nos permite vislumbrar essa semente. Um personagem que falha o tempo todo, mas ama no fim. Uma história que não termina com glória, mas com humildade. Uma narrativa que não redime com espetáculo, mas com silêncio.

Por exemplo, em Farrapo Humano, o protagonista é um alcoólatra que mergulha em espirais cada vez mais escuras. Nada é aliviado. Nada é suavizado. Mas, mesmo ali, mesmo naquela degradação, o filme nos oferece lampejos de dignidade. Um desejo de vida, ainda que tímido. Um resquício de beleza. Uma mão estendida. Uma possível saída. E é disso que a graça é feita: de possibilidades improváveis.

A graça escondida na miséria não justifica o sofrimento. Mas o redime. Ela não transforma a dor em algo bom — mas em algo fecundo. E isso só é possível porque existe um Deus que escolhe ser misericordioso. Um Deus que não se assusta com nossas quedas, não se cansa das nossas repetições, não se recusa a caminhar conosco mesmo quando andamos em círculos.

O cinema, quando se aproxima dessa experiência, não se torna religioso no sentido formal. Mas se torna sagrado no sentido mais puro: ele se transforma em espaço onde a humanidade pode respirar sem medo, onde a dor pode existir sem ser descartada, onde a salvação pode começar como uma intuição sutil, no meio do caos.

Assistir a um filme, então, pode ser mais do que entretenimento. Pode ser um exercício espiritual. Um ensaio para a compaixão. Um lugar onde Deus, que se comunica também através das histórias humanas, se aproxima de nós não com mandamentos, mas com imagens. Com cenas que acolhem. Com silêncios que escutam. Com personagens que falham — e mesmo assim nos comovem.

Porque a misericórdia é isso: um modo de enxergar como Deus. Sem medo da ferida. Sem pressa pela cura. Sem exigência de perfeição. Apenas presença e um amor que não desiste.

Talvez seja por isso que alguns filmes ficam conosco por anos. Porque eles não nos  disseram uma verdade. Eles nos ensinaram a vê-la. Ou melhor: a enxergá-la. E uma vez que enxergamos, já não somos os mesmos, porque enxergar com misericórdia é começar a amar com os olhos.

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