Entrevista com David Lynch sobre o filme “Uma História Real”
Por Redação Lumine
|
23.jan.2025
Midle Dot

Em 1999, o crítico Michael Henry realizou uma entrevista com David Lynch para a revista francesa Positif. O tema principal da entrevista foi o filme Uma história real, que, à época, tinha acabado de ser lançado. Traduzimos alguns trechos dessa entrevista na qual Lynch aborda alguns aspectos importantes do filme e de sua produção. Confira abaixo:

Henry: Uma história real foi o primeiro dos teus filmes cujo roteiro não foi escrito por você. O que te atraiu no projeto?

Lynch: O roteiro! Mary [roteirista do filme e esposa de Lynch na época] era fascinada por essa história. Ela sempre falava dela para mim. Eu adorei a ideia desse cara que pega o seu cortador de grama e sai para encontrar o seu irmão no outro lado da fronteira. Mas eu nunca imaginei que um dia eu faria um filme sobre essa história. Então, em 1998, quando Mary conseguiu os direitos da história, ela começou a reunir material relevante para produzi-la. Ela e John Roach refizeram o percurso do Alvin Straight, encontraram a família dele e os amigos mais próximos. Eu fui seguindo o progresso deles. De repente, eles concluíram o roteiro e deram o texto para eu ler. No início, pensei: “há pouquíssimas chances de eu querer dirigir isto”. Eu estava até pensando no que eu poderia falar para eles… mas, no momento em que eu comecei a ler, todos os meus receios desapareceram. Minha imaginação começou a trabalhar e eu senti uma forte emoção nascendo daquela história.

Henry: O roteiro tem muitas descrições visuais?

Lynch: O suficiente para que se passasse um filme dentro da minha cabeça enquanto eu o lia. O que mais me pegou foi a simplicidade, a pureza da história deste homem solitário. No início, nós não sabemos quase nada sobre ele. E, no fim da história, ele nos ensina uma lição muito valiosa sobre a vida. Isso me tocou profundamente. Então eu pensei que poderia transmitir essas qualidades sem muitos efeitos ou distrações. Eu realmente gosto de criar uma emoção pura, simples, com as imagens e os sons — e eu faço isso uma vez ou outra, como em O Homem Elefante, por exemplo. O roteiro escrito por Mary e John me permitiu criar exatamente esse tipo de emoção.

Henry: Como no final de O Homem Elefante, Uma história real começa e termina com a imagem de um céu estrelado.

Lynch: O céu era muito importante para a história porque, quando os dois irmãos protagonistas eram crianças, eles costumavam contemplá-lo nas noites de verão. Mas o sentido das estrelas vai muito além disso. Eu não poderia deixar de usar essa imagem.

Henry: Há uma sobreposição magnífica do céu com a terra, nós vemos o céu estrelado e depois vemos um campo de trigo. Quando isso surgiu durante a produção? Estava no roteiro?

Lynch: Isso não importa. Um roteiro é apenas um esqueleto. Você precisa preenchê-lo com carne e com sangue. E o diretor é um intérprete. Ele precisa traduzir as imagens que estão no roteiro. Isso serve para todas as ideias, sejam as que vêm de um roteiro ou de um livro. A ideia não pertence a você. Você recebe essas ideias — incluindo as imagens, os sons, e toda a atmosfera que vai surgir — a partir do material inicial. Você tenta transformar tudo isso em um filme, e às vezes esse processo te dá muita liberdade, e outras vezes não te dá nenhuma. E há todas as variáveis que influenciam o processo: as locações, a escolha dos atores, coisas desse tipo. Para que tudo saia bem, você precisa ter firmeza para manter-se fiel à primeira impressão.

Henry: Você filmou a história no coração das paisagens rurais. Isso poderia levar a uma descrição satírica. Mas a beleza do filme está, justamente, na ausência de qualquer tipo de ironia.

Lynch: Sou muito mais simples do que as pessoas imaginam. Não tenho nada contra as sátiras, mas essa história não pedia nenhum tipo de elemento satírico. Isso iria contra a natureza das coisas. E, quando fazemos um filme, é a história que determina o tipo de abordagem que devemos tomar. A desse filme é simples e direta. Eu precisava ser muito sutil. E isso não foi nem um pouco limitador. Para mim, a principal questão era: como eu faço para costurar todos esses elementos e criar uma bela tapeçaria, uma tapeçaria poética?

Henry: O passado do protagonista não é evocado por meio de flashbacks, mas por meio dos encontros que ele tem com as outras pessoas. O passado dele emerge das conversas que ele tem. De certa forma, essa é uma maneira pela qual ele vai se libertando, ao mesmo tempo em que ele inspira as pessoas com as quais ele conversa.

Lynch: Sim. Isso se chama reciprocidade, é assim que funciona em nossas vidas. Quando nós encontramos alguém, nós formamos uma impressão a respeito dessa pessoa, mas, na medida em que vamos conversando com ela, e imaginando o seu passado, essa pessoa se transforma aos nossos olhos, começa a aparecer sob uma nova luz, e então imaginamos o seu passado, todos os desafios que ela precisou enfrentar. Alvin Straight não é um santo, mas ele tem algo de muito valioso para compartilhar com os outros. Ele tem um coração amplamente aberto. E é isso que ele tem para dar para os outros. É um homem simples, inocente e muito forte.

Henry: Ele pertence a uma geração que já não costuma aparecer muito no cinema: a geração dos “homens esquecidos” da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. O lugar onde os dois homens se encontram na cena final é muito parecido com as fotografias do Walker Evans ou do Paul Strand.

Lynch: Todos nós temos um pai ou um avô que viveu durante aquele período. Às vezes, quando eles começam a nos contar a sua história, nós temos a impressão de que nós os compreendemos, mas  é apenas uma impressão, uma noção muito vaga, porque não há como compartilhar as suas preocupações com as pessoas de outra geração. Na verdade, eles não estão compartilhando a experiência deles, mas as consequências dessa experiência, aquilo que ficou marcado neles.

O ator Richard Farnsworth como Alvin Straigh em cena do filme "Uma História Real", de David Lynch
Richard Farnsworth como Alvin Straight

Henry: Você chegou a trilhar o percurso do Alvin Straight?

Lynch: Duas vezes. Na primeira, estávamos buscando por locações. Na segunda, queríamos aprofundar a nossa perspectiva. A equipe fez o percurso uma terceira fez para ajustar todos os detalhes. O problema é que quando você viaja de carro você não consegue ter a noção de como foi a viagem do Alvin — mesmo que você dirija muito devagar. Não dá para trilhar um grande percurso a cinco quilômetros por hora sem danificar o teu carro. 

Henry: Você cresceu na zona rural de Montana, no estado de Washington, e em Idaho. O teu interesse pelo campo vem da tua infância?

Lynch: Na verdade, não é um universo pelo qual eu me interesse muito. Mas a infância é algo tão poderoso que, seja de modo consciente ou não, algumas de suas imagens acabam vindo para a superfície e adentrando no meu trabalho. De toda forma, não acho que seja necessário ter vivido em um mundo particular para conseguir entendê-lo perfeitamente. Quando eu fui para a Inglaterra filmar O Homem Elefante, eu não sabia nada a respeito daquele universo. Tentei remediar isso lendo alguns livros e vendo alguns arquivos. Mas, quando eu cheguei lá, senti certa resistência por parte das pessoas, como se elas pensassem: “o que esse americano pode entender da nossa história?” Então eu fui conhecer o Hospital dos pobres de Londres. Enquanto eu caminhava, tive uma “iluminação” repentina, um sentimento me invadiu, e eu fui transportado para o período em que se passava a história do filme. Eu senti aquilo com todo o meu ser, e depois disso já não importava mais se eu era um típico cidadão vitoriano ou um americano de Montana.

Henry: Em vários momentos do filme, você mostra Richard Farnsworth contemplando a beleza do mundo natural. Como nós, ele também é um espectador, mas dentro do filme.

Lynch: Naquela parte do país, a natureza é uma força tão impactante que exige que nós prestemos atenção nela. As estações do ano são muito importantes lá. Os fazendeiros podem perder todo o seu trabalho por causa de uma tempestade repentina. Então eles vivem extremamente atentos às previsões do tempo. Cada estação tem a sua beleza particular, assim como cada hora do dia. Os fazendeiros estão acostumados e estão bem atentos a isso. Mas você só se torna consciente dessa beleza quando viaja lentamente pelo campo. A história do filme se passa durante o outono.

Henry: É comum você mudar de uma perspectiva microscópica para uma perspectiva macroscópica, às vezes no meio de uma mesma cena.

Lynch: Quando vamos além de uma perspectiva específica, uma repentina mudança de dimensões revela toda uma nova perspectiva para você. Isso acontece várias vezes durante a viagem do Alvin. Você tem a impressão de que você mesmo está viajando pelo campo. O mesmo acontece com as estrelas. Às vezes, quando você olha as estrelas a partir do chão, você tem a sensação de estar flutuando. Você pode flutuar pelos campos da mesma forma. Para mim, a coisa mais importante era a vasta extensão daqueles campos, e o sentimento de estar flutuando na natureza.

Henry: Esse filme é como uma guinada de 180 graus na tua filmografia. Todas as personagens são gentis com o próximo, as pessoas são maravilhosas, há uma visão muito positiva da natureza humana.

Lynch: Mary é natural de Madison, no Wisconsin, e nós temos uma casa lá. Na primeira vez em que estive lá com ela e visitei algumas lojas, pensei que todos estavam fazendo uma piada comigo, pois todo mundo sorria o tempo todo. Eles eram muito educados, de modo exagerado. Até hoje as pessoas de lá me parecem mais educadas e gentis do que todas as outras. Se você tem um problema, eles estão sempre prontos para ajudá-lo. Acho que é porque são fazendeiros: como vivem em uma região com poucos vizinhos, eles dependem muito uns dos outros. Se você está com alguma dificuldade, pode ter certeza de que alguém virá te ajudar. Alvin recebeu muita ajuda durante a sua jornada.

Henry: Parece que você rejeita a ideia do paraíso perdido, do jardim idílico que foi destruído pelas máquinas. No teu filme, as máquinas são benevolentes e ajudam as pessoas de uma forma muito poderosa.

Lynch: Mas as máquinas são, de fato, “benevolentes”. Essa é uma ótima palavra. É como em um jardim japonês. A natureza faz com que as plantas cresçam, mas são os jardineiros que fazem com que as árvores adquiram a forma que eles querem, ajustando as pedras ou canalizando o curso das águas conforme alguns critérios estéticos. Eles guiam a natureza e conseguem o resultado pretendido. É a mesma coisa aqui: as máquinas, as colheitadeiras, os tratores, tudo isso exerce uma função específica. É tudo muito organizado. A vida no campo é um exemplo perfeito da colaboração entre o homem e a natureza.

Henry: Em seus filmes, é comum que a família seja o elemento mais disfuncional das histórias. Aqui, contudo, você celebra a família com alguns toques de lirismo.

Lynch: Essa é a natureza desta história. A imagem dos arbustos que se tornam inquebráveis quando estão unidos é uma metáfora criada pelo próprio Alvin. A família dele nos contou essa história.

Richard Farnsworth e Sissy Spacek em cena do filme "Uma história real", de David Lynch
Richard Farnsworth e Sissy Spacek

Henry: As personagens estão todas solidamente estabelecidas em seu ambiente físico. E isso também pode ser dito a respeito de sua ética. Elas sabem exatamente o que é certo e o que é errado.

Lynch: Independentemente do que digam, todos nós sabemos o que é certo. Nós conhecemos com exatidão as nossas boas e más ações. Mesmo quando há interesses pessoais envolvidos. Mesmo quando o que é bom para você não é necessariamente bom para uma outra pessoa. Nós não podemos julgar a moralidade dos outros, mas nós temos uma noção clara daquilo que nos diz respeito. Por outro lado, é verdade que essa percepção só se aprofunda à medida que envelhecemos, quando a morte começa a se aproximar e nós começamos a reconsiderar todas as coisas.

Henry: A última frase que aparece em O Homem Elefante é “Nada morrerá”. Você não acha que ela poderia se aplicar também a Uma história real?

Lynch: Sem dúvida.

***

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Em 1999, o crítico Michael Henry realizou uma entrevista com David Lynch para a revista francesa Positif. O tema principal da entrevista foi o filme Uma história real, que, à época, tinha acabado de ser lançado. Traduzimos alguns trechos dessa entrevista na qual Lynch aborda alguns aspectos importantes do filme e de sua produção. Confira abaixo:

Henry: Uma história real foi o primeiro dos teus filmes cujo roteiro não foi escrito por você. O que te atraiu no projeto?

Lynch: O roteiro! Mary [roteirista do filme e esposa de Lynch na época] era fascinada por essa história. Ela sempre falava dela para mim. Eu adorei a ideia desse cara que pega o seu cortador de grama e sai para encontrar o seu irmão no outro lado da fronteira. Mas eu nunca imaginei que um dia eu faria um filme sobre essa história. Então, em 1998, quando Mary conseguiu os direitos da história, ela começou a reunir material relevante para produzi-la. Ela e John Roach refizeram o percurso do Alvin Straight, encontraram a família dele e os amigos mais próximos. Eu fui seguindo o progresso deles. De repente, eles concluíram o roteiro e deram o texto para eu ler. No início, pensei: “há pouquíssimas chances de eu querer dirigir isto”. Eu estava até pensando no que eu poderia falar para eles… mas, no momento em que eu comecei a ler, todos os meus receios desapareceram. Minha imaginação começou a trabalhar e eu senti uma forte emoção nascendo daquela história.

Henry: O roteiro tem muitas descrições visuais?

Lynch: O suficiente para que se passasse um filme dentro da minha cabeça enquanto eu o lia. O que mais me pegou foi a simplicidade, a pureza da história deste homem solitário. No início, nós não sabemos quase nada sobre ele. E, no fim da história, ele nos ensina uma lição muito valiosa sobre a vida. Isso me tocou profundamente. Então eu pensei que poderia transmitir essas qualidades sem muitos efeitos ou distrações. Eu realmente gosto de criar uma emoção pura, simples, com as imagens e os sons — e eu faço isso uma vez ou outra, como em O Homem Elefante, por exemplo. O roteiro escrito por Mary e John me permitiu criar exatamente esse tipo de emoção.

Henry: Como no final de O Homem Elefante, Uma história real começa e termina com a imagem de um céu estrelado.

Lynch: O céu era muito importante para a história porque, quando os dois irmãos protagonistas eram crianças, eles costumavam contemplá-lo nas noites de verão. Mas o sentido das estrelas vai muito além disso. Eu não poderia deixar de usar essa imagem.

Henry: Há uma sobreposição magnífica do céu com a terra, nós vemos o céu estrelado e depois vemos um campo de trigo. Quando isso surgiu durante a produção? Estava no roteiro?

Lynch: Isso não importa. Um roteiro é apenas um esqueleto. Você precisa preenchê-lo com carne e com sangue. E o diretor é um intérprete. Ele precisa traduzir as imagens que estão no roteiro. Isso serve para todas as ideias, sejam as que vêm de um roteiro ou de um livro. A ideia não pertence a você. Você recebe essas ideias — incluindo as imagens, os sons, e toda a atmosfera que vai surgir — a partir do material inicial. Você tenta transformar tudo isso em um filme, e às vezes esse processo te dá muita liberdade, e outras vezes não te dá nenhuma. E há todas as variáveis que influenciam o processo: as locações, a escolha dos atores, coisas desse tipo. Para que tudo saia bem, você precisa ter firmeza para manter-se fiel à primeira impressão.

Henry: Você filmou a história no coração das paisagens rurais. Isso poderia levar a uma descrição satírica. Mas a beleza do filme está, justamente, na ausência de qualquer tipo de ironia.

Lynch: Sou muito mais simples do que as pessoas imaginam. Não tenho nada contra as sátiras, mas essa história não pedia nenhum tipo de elemento satírico. Isso iria contra a natureza das coisas. E, quando fazemos um filme, é a história que determina o tipo de abordagem que devemos tomar. A desse filme é simples e direta. Eu precisava ser muito sutil. E isso não foi nem um pouco limitador. Para mim, a principal questão era: como eu faço para costurar todos esses elementos e criar uma bela tapeçaria, uma tapeçaria poética?

Henry: O passado do protagonista não é evocado por meio de flashbacks, mas por meio dos encontros que ele tem com as outras pessoas. O passado dele emerge das conversas que ele tem. De certa forma, essa é uma maneira pela qual ele vai se libertando, ao mesmo tempo em que ele inspira as pessoas com as quais ele conversa.

Lynch: Sim. Isso se chama reciprocidade, é assim que funciona em nossas vidas. Quando nós encontramos alguém, nós formamos uma impressão a respeito dessa pessoa, mas, na medida em que vamos conversando com ela, e imaginando o seu passado, essa pessoa se transforma aos nossos olhos, começa a aparecer sob uma nova luz, e então imaginamos o seu passado, todos os desafios que ela precisou enfrentar. Alvin Straight não é um santo, mas ele tem algo de muito valioso para compartilhar com os outros. Ele tem um coração amplamente aberto. E é isso que ele tem para dar para os outros. É um homem simples, inocente e muito forte.

Henry: Ele pertence a uma geração que já não costuma aparecer muito no cinema: a geração dos “homens esquecidos” da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial. O lugar onde os dois homens se encontram na cena final é muito parecido com as fotografias do Walker Evans ou do Paul Strand.

Lynch: Todos nós temos um pai ou um avô que viveu durante aquele período. Às vezes, quando eles começam a nos contar a sua história, nós temos a impressão de que nós os compreendemos, mas  é apenas uma impressão, uma noção muito vaga, porque não há como compartilhar as suas preocupações com as pessoas de outra geração. Na verdade, eles não estão compartilhando a experiência deles, mas as consequências dessa experiência, aquilo que ficou marcado neles.

O ator Richard Farnsworth como Alvin Straigh em cena do filme "Uma História Real", de David Lynch
Richard Farnsworth como Alvin Straight

Henry: Você chegou a trilhar o percurso do Alvin Straight?

Lynch: Duas vezes. Na primeira, estávamos buscando por locações. Na segunda, queríamos aprofundar a nossa perspectiva. A equipe fez o percurso uma terceira fez para ajustar todos os detalhes. O problema é que quando você viaja de carro você não consegue ter a noção de como foi a viagem do Alvin — mesmo que você dirija muito devagar. Não dá para trilhar um grande percurso a cinco quilômetros por hora sem danificar o teu carro. 

Henry: Você cresceu na zona rural de Montana, no estado de Washington, e em Idaho. O teu interesse pelo campo vem da tua infância?

Lynch: Na verdade, não é um universo pelo qual eu me interesse muito. Mas a infância é algo tão poderoso que, seja de modo consciente ou não, algumas de suas imagens acabam vindo para a superfície e adentrando no meu trabalho. De toda forma, não acho que seja necessário ter vivido em um mundo particular para conseguir entendê-lo perfeitamente. Quando eu fui para a Inglaterra filmar O Homem Elefante, eu não sabia nada a respeito daquele universo. Tentei remediar isso lendo alguns livros e vendo alguns arquivos. Mas, quando eu cheguei lá, senti certa resistência por parte das pessoas, como se elas pensassem: “o que esse americano pode entender da nossa história?” Então eu fui conhecer o Hospital dos pobres de Londres. Enquanto eu caminhava, tive uma “iluminação” repentina, um sentimento me invadiu, e eu fui transportado para o período em que se passava a história do filme. Eu senti aquilo com todo o meu ser, e depois disso já não importava mais se eu era um típico cidadão vitoriano ou um americano de Montana.

Henry: Em vários momentos do filme, você mostra Richard Farnsworth contemplando a beleza do mundo natural. Como nós, ele também é um espectador, mas dentro do filme.

Lynch: Naquela parte do país, a natureza é uma força tão impactante que exige que nós prestemos atenção nela. As estações do ano são muito importantes lá. Os fazendeiros podem perder todo o seu trabalho por causa de uma tempestade repentina. Então eles vivem extremamente atentos às previsões do tempo. Cada estação tem a sua beleza particular, assim como cada hora do dia. Os fazendeiros estão acostumados e estão bem atentos a isso. Mas você só se torna consciente dessa beleza quando viaja lentamente pelo campo. A história do filme se passa durante o outono.

Henry: É comum você mudar de uma perspectiva microscópica para uma perspectiva macroscópica, às vezes no meio de uma mesma cena.

Lynch: Quando vamos além de uma perspectiva específica, uma repentina mudança de dimensões revela toda uma nova perspectiva para você. Isso acontece várias vezes durante a viagem do Alvin. Você tem a impressão de que você mesmo está viajando pelo campo. O mesmo acontece com as estrelas. Às vezes, quando você olha as estrelas a partir do chão, você tem a sensação de estar flutuando. Você pode flutuar pelos campos da mesma forma. Para mim, a coisa mais importante era a vasta extensão daqueles campos, e o sentimento de estar flutuando na natureza.

Henry: Esse filme é como uma guinada de 180 graus na tua filmografia. Todas as personagens são gentis com o próximo, as pessoas são maravilhosas, há uma visão muito positiva da natureza humana.

Lynch: Mary é natural de Madison, no Wisconsin, e nós temos uma casa lá. Na primeira vez em que estive lá com ela e visitei algumas lojas, pensei que todos estavam fazendo uma piada comigo, pois todo mundo sorria o tempo todo. Eles eram muito educados, de modo exagerado. Até hoje as pessoas de lá me parecem mais educadas e gentis do que todas as outras. Se você tem um problema, eles estão sempre prontos para ajudá-lo. Acho que é porque são fazendeiros: como vivem em uma região com poucos vizinhos, eles dependem muito uns dos outros. Se você está com alguma dificuldade, pode ter certeza de que alguém virá te ajudar. Alvin recebeu muita ajuda durante a sua jornada.

Henry: Parece que você rejeita a ideia do paraíso perdido, do jardim idílico que foi destruído pelas máquinas. No teu filme, as máquinas são benevolentes e ajudam as pessoas de uma forma muito poderosa.

Lynch: Mas as máquinas são, de fato, “benevolentes”. Essa é uma ótima palavra. É como em um jardim japonês. A natureza faz com que as plantas cresçam, mas são os jardineiros que fazem com que as árvores adquiram a forma que eles querem, ajustando as pedras ou canalizando o curso das águas conforme alguns critérios estéticos. Eles guiam a natureza e conseguem o resultado pretendido. É a mesma coisa aqui: as máquinas, as colheitadeiras, os tratores, tudo isso exerce uma função específica. É tudo muito organizado. A vida no campo é um exemplo perfeito da colaboração entre o homem e a natureza.

Henry: Em seus filmes, é comum que a família seja o elemento mais disfuncional das histórias. Aqui, contudo, você celebra a família com alguns toques de lirismo.

Lynch: Essa é a natureza desta história. A imagem dos arbustos que se tornam inquebráveis quando estão unidos é uma metáfora criada pelo próprio Alvin. A família dele nos contou essa história.

Richard Farnsworth e Sissy Spacek em cena do filme "Uma história real", de David Lynch
Richard Farnsworth e Sissy Spacek

Henry: As personagens estão todas solidamente estabelecidas em seu ambiente físico. E isso também pode ser dito a respeito de sua ética. Elas sabem exatamente o que é certo e o que é errado.

Lynch: Independentemente do que digam, todos nós sabemos o que é certo. Nós conhecemos com exatidão as nossas boas e más ações. Mesmo quando há interesses pessoais envolvidos. Mesmo quando o que é bom para você não é necessariamente bom para uma outra pessoa. Nós não podemos julgar a moralidade dos outros, mas nós temos uma noção clara daquilo que nos diz respeito. Por outro lado, é verdade que essa percepção só se aprofunda à medida que envelhecemos, quando a morte começa a se aproximar e nós começamos a reconsiderar todas as coisas.

Henry: A última frase que aparece em O Homem Elefante é “Nada morrerá”. Você não acha que ela poderia se aplicar também a Uma história real?

Lynch: Sem dúvida.

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