Richard Gere em cena do filme "Dias de paraíso", de Terrence Malick - Lumine

Em busca da redenção: “Dias de paraíso”, de Terrence Malick

Dias de Paraíso, de Terrence Malick, é reconhecidamente um dos filmes mais belos da história do cinema.

Vários são os elementos que contribuem para isso: o visual deslumbrante, criado pela ambientação e acentuado pela fotografia de Haskell Wexler e Nestor Almendros; a trilha sonora, composta pelo grande maestro Ennio Moricone; as atuações contidas, com poucas falas, mas altamente expressivas; a narração em off da personagem infantil, que acrescenta uma dimensão de sonho à história; e, acima de tudo, o modo com que Malick estrutura todos esses elementos.

Não se trata de um filme convencional, pois, diferente dos filmes que concentram seu desenvolvimento nos personagens principais, em Dias de paraíso a paisagem, a luz, as estações do ano, a música e a montagem também são como personagens, pois são fundamentais para o efeito final que é provocado.

Richard Gere e Brooke Adams em Dias de paraíso

A história é aparentemente banal: na cidade de Chicago, após matar por acidente o encarregado da fábrica em que trabalhava, Bill (Richard Gere) foge com a sua namorada, Abby (Brooke Adams) e sua irmã mais nova, Linda (Linda Manz), para trabalhar na zona rural do país, nos estados do sul.

Chegando ao Texas eles encontram emprego nos campos de trigo de um fazendeiro que está prestes a morrer (Sam Shepard). Como Bill não é casado com Abby, eles decidem dizer para todos que são irmãos. Então o fazendeiro apaixona-se por ela.

Bill, sabendo que o proprietário está muito doente, vê na união dele com Abby a oportunidade de uma nova vida. Contudo, vários acontecimentos farão com que o seu plano seja maldito.

Para além dessa história e dos elementos mencionados, o que contribui para a beleza do filme de Malick são os temas sugeridos pela narrativa.

O paraíso perdido

Os filmes de Malick geralmente são chamados de “filosóficos”, pois é evidente que o cineasta não busca apenas contar boas histórias. Em seus filmes, há mesmo uma espécie de sugestão filosófica: eles convidam o espectador a refletir a respeito de alguns temas.

Entre os grandes temas abordados por Malick estão: o problema do mal; a violação da natureza no mundo e dentro dos homens; o predomínio da vida urbana e industrial sobre a vida pastoril; a ausência de sentido na vida dos jovens que vivem nessa sociedade industrial; etc.

Subjacente a todos estes temas está o da perda do paraíso e da busca pela redenção. Os personagens criados por Malick são indivíduos que, cheios de falhas e pecados, não deixam de reconhecer sua culpa e de buscar pela plenitude que lhes falta.

No caso de Dias de paraíso, o paraíso perdido está representado pelas más ações dos personagens e é acentuado pelo contraste criado entre a malícia e a inocência. Esse contraste é expresso, principalmente, pela narração realizada pela irmã mais nova de Bill: Linda.

Linda Manz como a personagem Linda

O fato de a história ser contada por uma criança afeta o sentido do filme de duas maneiras: primeiro, ele confere um olhar “poético” à narrativa, pois Linda vê todos os acontecimentos como parte de uma grande aventura. Podemos perceber isso quando ela fala de uma “profecia” apocalíptica que lhe foi narrada:

Uma vez conheci um cara chamado Ding Dong. Ele disse que a Terra inteira será engolida pelas chamas. As chamas sairão daqui, de lá, subirão pelo ar. As montanhas vão arder em chamas altas. A água vai se erguer em chamas. Os animais correrão para todos os lados, alguns deles queimados, com metade de suas asas queimadas. As pessoas irão gritar por socorro. Os bons irão para o Paraíso e escaparão do fogo. Mas se nos comportarmos mal, Deus nem sequer nos ouvirá falar”.

O tom com o qual ela narra tal profecia é o mesmo que ela usa para descrever qualquer outro tipo de situação mais banal. Nesse sentido, o estilo de sua narração é muito semelhante ao dos famosos narradores infantis do escritor americano Mark Twain: todas as situações são descritas de uma maneira meio ingênua, com um tom de voz de alguém que ainda não parou para pensar na gravidade de certos fatos.

A perda do paraíso aparece também no título do filme e no contraste estabelecido entre o ambiente urbano e o ambiente rural. A palavra “dias” estabelece a brevidade da “experiência paradisíaca” vivida pelos personagens.

O filme começa com imagens urbanas dos Estados Unidos no início do século XX, em 1916, época em que o país era visto como uma “terra prometida” para os imigrantes que estavam chegando — pois passava por um período de grande desenvolvimento tecnológico; ao mesmo tempo, contudo, esse era um momento de instabilidade, pois logo os americanos sofreriam com a Grande Depressão.

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Depois de termos visto essas imagens, Linda nos descreve a situação em que viviam as pessoas naquela circunstância: “Eu e meu irmão costumávamos andar pela rua. Havia pessoas sofrendo com dor e com fome. Algumas pessoas tinham a língua de fora”.

Ao fugir dessa circunstância, Bill, Abby e Linda encontram um refúgio nos campos de trigo do sul. Nesse novo ambiente, embora o trabalho seja intenso, exaustivo e mal remunerado, o cenário da área rural — sobretudo pelo modo como Malick o filme — cria um contraste com o ambiente urbano em que eles viviam antes.

Os campos de trigo foram filmados principalmente nos instantes crepusculares da manhã e da tarde — momentos que são conhecidos como “hora mágica”, quando o céu fica límpido e adquire uma coloração rósea. Tais momentos conferem uma atmosfera paradisíaca à experiência dos personagens, pois aí os homens estão em contato com a natureza, integrados ao ritmo dos ciclos orgânicos da terra. De certa forma, pode-se dizer que eles estão mais próximos da ordem divina.

No entanto, essa ordem será quebrada pela desordem que os homens trazem dentro do seu coração.

Simbolismo bíblico

Os trabalhadores sob a “chuva” de gafanhotos

Há várias alusões bíblicas em Dias de Paraíso. O casamento entre Abby e o fazendeiro remete diretamente à história de Rute e de Boaz, do Antigo Testamento. Por outro lado, a alegação de que são irmãos e não amantes, faz com que Bill e Abby relembrem a história de Abraão e Sara. Além dessas duas referências há a de Abel e Caim, reforçada pelo cenário em que ocorre o desfecho trágico da história e pela inveja sentida por Bill. Sem contar ainda os gafanhotos que consomem a plantação, símbolo de uma justiça profética que ecoa as palavras de Linda proferidas no início do filme.

Entretanto, tais referências bíblicas não existem para criar uma interpretação esquemática. Se há uma “mensagem” em Dias de paraíso, ela é construída muito mais pelas imagens e pelas sugestões poéticas do que por um discurso explícito. As referências servem apenas para mostrar que existe um sentido cósmico e transcendente na vida de todos os homens, independente da época em que eles vivam. Mais do que julgar os homens, Malick está preocupado em indagar de onde vem o mal e como ele se manifesta nas ações humanas.

Em determinado momento do filme, a narradora Linda faz o seguinte comentário: “Ninguém é perfeito. Todos têm uma metade anjo e uma metade demônio dentro de si”. Esse é mais um dos contrastes presentes em um filme construído a partir deles.

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O filme começa e inicia quase do mesmo modo: após sua experiência “paradisíaca”, os personagens retornam para o ambiente da metrópole, que é hostil ao homem, uma imagem concreta da perda do paraíso: da ambição, do progresso desenfreado e do materialismo.

Por isso não existe um “desfecho”, uma solução definitiva para os problemas apresentados — sobretudo para a personagem Linda, para quem toda a história que acompanhamos funcionou como se fosse um rito de passagem da infância para a vida adulta. E aí está mais uma metáfora para a perda do paraíso: ao final do filme, Linda adquiriu uma consciência mais profunda do mal e da natureza humana como um todo.

Um momento de perfeição

Para além de qualquer sugestão interpretativa, podemos assistir a Dias de Paraíso apenas para contemplar o belo conjunto de sons e imagens presentes no filme. Há um senso contemplativo quase ausente em histórias movidas apenas pela ação. No paraíso idílico dos campos de trigo, além de captar as belezas naturais de modo excepcional, a câmera de Malick se concentra em mínimos gestos que, em si, estão repletos de beleza: uma pessoa caminhando pelo campo, os olhos de alguém que se apaixona, um toque de uma mão na outra, os trabalhadores colhendo o trigo, descansando do trabalho exaustivo, contemplando a natureza, cozinhando, divertindo-se. Nessas imagens, o filme se transforma também numa crônica dos trabalhadores que ajudaram a criar os Estados Unidos do século XX.

Após a produção do filme, Malick demoraria dois anos para editá-lo e concluí-lo conforme seus objetivos. Ele pretendia que, ao assistir ao filme, os espectadores sentissem algo semelhante a quando “uma gota de água cai no lago, aquele momento de perfeição”. Podemos dizer que, de fato, esse efeito foi atingido, pois Dias de paraíso é uma obra de arte de uma beleza singular, cujo efeito, após ter tocado o espectador, permanece por muito tempo irradiando em sua memória.

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