Entrevista com o pianista Felipe Scagliusi

O cinema é uma arte que conjuga muitas outras em sua expressão. De modo que, quando o espectador assiste a um filme, ele também está se aproximando dessas outras artes.

Na Lumine, você encontra grandes filmes e séries cujo tema principal é a música. Quando você assiste a esses filmes, você fica conhecendo mais a respeito da vida e da obra de compositores célebres ou simplesmente entra em contato com adaptações de algumas de suas peças musicais.

Nos filmes Mozart, Schubert e Mademoiselle Paradis, por exemplo, somos transportados para a Europa do século XVIII para seguir os passos de três artistas. As dificuldades que enfrentam — financeiras, familiares, físicas — marcam suas almas e dão origem a composições que marcaram a humanidade.

Don Giovanni, obra-prima de Mozart, recebeu em 1979 uma monumental adaptação para o cinema, com direção do cineasta americano Joseph Losey. A história do famoso conquistador que recebe uma última chance é apresentada de modo impecável com a execução da orquestra e do coro da Ópera de Paris.

O compositor Georges Bizet viveu na França, em meados do século XIX. Carmen, ópera de sua autoria, obteve uma versão cinematográfica realizada pelo cineasta italiano Francesco Rosi. Com elenco formado por estrelas dos palcos, a paixão e a intensidade da história ambientada na Espanha foram transpostas para as telas.

Já na série Bach: o mestre da música, você acompanha a vida e a obra de Johann Sebastian Bach (1685-1750), um dos maiores músicos e compositores de todos os tempos.

Para aprofundar nosso conhecimento sobre a música, convidamos o pianista e professor Felipe Scagliusi para esta entrevista. Com experiência acadêmica e nos palcos, tendo se apresentado em cidades como Nova York, Paris e Montevidéu, Scagliusi gentilmente nos ajuda a compreender a história dessa forma de arte que tanto nos comove.

Lumine: Mozart, Schubert e Maria Theresia Paradis viveram na Áustria na segunda metade do século XVIII. Que lugar a música ocupava na sociedade desse tempo?​

Scagliusi: Naquele tempo, da segunda metade do século XVIII até o começo do século XIX, a música já tinha um papel diferente de antes. Em vez de ocupar um lugar mais funcional, acontecendo no ambiente litúrgico ou eclesiástico e permeando situações sociais aristocráticas, a música passa a ser apreciada como arte pura, sem ter um propósito social nem estar atrelada a um ritual específico. Ela passava a ocupar um lugar de enfeite das situações ou era apreciada em si mesma, em óperas, concertos em castelos. A sociedade e a Igreja patrocinavam músicos, mas a música não se reduzia mais àquelas situações de antes. Os compositores se tornavam muito conhecidos, arrumavam emprego nas cortes, giravam a Europa por todos os reinos, tocando, escrevendo.

Retrato de Franz Liszt tocando na corte do imperador Franz Josef

A música era uma coisa viva, que fazia parte da vida das pessoas, sendo inclusive estudada por muitas autoridades. Era um idioma que se falava, uma moda da época. Os compositores nem precisavam anotar tantos detalhes nas partituras porque muitas coisas as pessoas já sabiam fazer. Naquela época, as pessoas compreendiam os estilos e a linguagem em que os músicos escreviam. Não era como hoje, em que ao mesmo tempo a música erudita parece ser um idioma um pouco morto, como o latim, e cada um é como uma ilha, escrevendo aquilo que tem na própria cabeça.

A música era popular, mas popular nos ambientes aristocráticos. Sujeitos mais simples provavelmente não tinham acesso a essa música, mas sim as pessoas do meio da realeza, da aristocracia. Na época de Mozart e na de Maria Theresia Paradis, a música era algo que fazia parte da sociedade. Na época de Schubert, as coisas começaram a mudar um pouco. O Schubert é um compositor da transição do classicismo para o romantismo. Mais próximo do artista romântico, ele é mais independente em relação a esse ambiente aristocrático, principalmente da Igreja ou mesmo da realeza, que eu estava descrevendo.

Lumine: Quais características as obras de Mozart e de Schubert possuem em comum? O que as distingue?

Scagliusi: em comum, ambos são compositores de característica vocal. Mesmo quando não escrevem para a voz, a música deles parece ter sido feita para ser cantada. As melodias tocadas no piano, no violino, com orquestra, parecem canções, são coisas pensadas como se fosse a voz humana. Em outros compositores essa característica não é tão presente assim, sendo mais instrumentais, como é o caso de Beethoven. Você não imagina alguém cantando a “5ª Sinfonia”, enquanto em Schubert e em Mozart as linhas melódicas são vocais. Além disso, eles têm em comum o aspecto vienense. Em Schubert isso é mais claro, mais óbvio, mas os dois possuem. São dois austríacos.

Cena de “Mozart: o gênio da música”

Em relação ao que os distingue, em primeiro lugar é a questão estilística. Mozart figura entre os grandes compositores do classicismo, já Schubert é um fim de classicismo e começo do romantismo. É difícil de definir o seu estilo, sendo muito comum encaixá-lo entre os primeiros românticos. Em segundo lugar, Schubert era um compositor muito conhecido por suas canções curtas acompanhadas pelo piano. É um lugar comum ao se falar de Schubert dizer que ele era um compositor que escrevia canções. Mesmo quando ele escreve obras de outros gêneros, como sinfonias ou sonatas, as pessoas costumam dizer que parecem canções, ainda que maiores, bem longas até.

De fato, escrever à maneira de canções, os chamados lieder, é uma característica de Schubert. Já Mozart é um compositor que domina muito o estilo clássico e a forma de uma maneira um pouco mais ampla que Schubert, em quem o aspecto das canções é mais presente e se repete um pouco mais. Mozart domina todas as formas do estilo clássico, com peças maiores, sinfonias, óperas, sonatas. Mozart é o homem que dominou o estilo clássico e todas as suas pequenas variações com perfeição máxima.

Lumine: Georges Bizet, compositor de “Carmen”, viveu na França no século XIX. Quais são as marcas do seu estilo?​

“Carmen”, de Francesco Rosi, adaptação da ópera de Bizet.

Scagliusi: em vida, Georges Bizet não foi tão destacado, devia ser mais conhecido entre os músicos. Carmen, sua obra mais conhecida, gerou polêmicas na sociedade, por conta da história que foi muito chocante na época. Só foi mais aceita depois da morte do compositor. Bizet era um orquestrador muito bom e uma das marcas de seu estilo era combinar as melodias francesas com um tipo de melodia grandiosa vienense.

Scagliusi: A primeira ópera famosa foi O Orfeu, de Monteverdi, que estreou por volta de 1600, data que é considerada como início do barroco musical, período que vai até o ano de 1750, que é o da morte de Bach, o último e mais importante dos compositores barrocos.

Como dizia o Wagner, a ópera é um gênero que tenta juntar todas as artes. Por isso ele queria construir com a ópera as obras de arte supremas. A ópera une o teatro, a literatura, a música, o canto, as artes visuais. As óperas barrocas tinham painéis pintados e cenários feitos até com tecnologias misteriosas, que as pessoas nem sabiam como conseguiam imitar florestas, castelos. Era tudo muito criativo e muito rico no palco.

Retrato do compositor Richard Wagner pelo pintor Giuseppe Tivoli

A ópera tem diferentes períodos e estilos, mas basicamente ela se reveza entre passagens com canções, sejam árias, no caso de um cantor solo, ou duetos, trios e assim por diante, e passagens chamadas de recitativo, em que a história se desenrola e flui.

Lumine: Quais dicas você daria para quem deseja conhecer mais sobre música erudita?​

A primeira coisa é ouvir sem estereótipos. Não se deve achar que música erudita é algo para pessoas mais velhas, no caso de você ser uma pessoa mais jovem, ou que é algo para quem estudou muito, para intelectuais, etc. Deve-se simplesmente deixar a música tocando em casa e se puder se concentrar, procurar imaginar uma história enquanto está ouvindo. Que história aquilo está te dizendo? Que história aquilo está te contando?

Cena da série Johan Sebastian Bach – o mestre da música

Outra coisa a se procurar ter em mente é exercitar a memória. Quando as peças começam, procure prestar atenção nas melodias que são tocadas, porque esse é o material que o compositor depois vai desenvolver. Ele vai pegar aquelas melodias, aqueles temas musicais do começo, e vai construir e elaborar em cima deles. A música erudita é uma “metamúsica”, é uma música que fala de música. Muitas vezes os compositores pegavam temas populares ou que vinham diretamente do folclore e elaboravam em cima disso. Quando não eram do folclore ou populares, eram temas com aquele mesmo perfume, com o mesmo estilo. A música erudita costuma ser uma elaboração em torno de um material mais simples. Prestar atenção no início da peça é reconhecer o material e o assunto que o compositor vai explorar no resto da obra.

Também ajuda muito ler sobre história da música ou biografias de compositores ou assistir a filmes sobre esses temas, como os filmes da Lumine. Isso é uma coisa maravilhosa, porque te joga naquele ambiente, enriquece a sua imaginação em relação a como aquilo foi escrito. Dá vontade de ouvir mais, te familiariza com as peças.

O pianista Felipe Scagliusi

É importante também ter consciência de que muitas peças não são absorvidas de primeira. Então, deixa tocar em casa, escuta bastante aquilo, várias vezes, para que seja digerido. É muito difícil, a não ser com obras mais conhecidas e mais diretas, que aconteça de, numa primeira audição, você achar aquilo “o máximo” e amar aquela peça. Tente ouvir mais vezes, insista um pouco.

Preencha as tuas horas de lazer com a beleza do cinema e da música! Os filmes Mozart: o gênio da música, Carmen, Mademoiselle Paradis, Don Giovanni e a série Johan Sebastian Bach estão disponíveis na Lumine.

Conheça o canal do Felipe Scagliusi no Youtube.

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