Matheus Bazzo conversa com o Padre Lucas Mendes

Como os filmes dialogam com a fé — conversa com o padre Lucas Mendes

No período de Quaresma, somos todos convidados a aprofundar a nossa intimidade com Deus por meio de um mergulho em nossa interioridade.

Para tornar essa jornada mais frutífera, podemos nos servir de tudo que favoreça boas reflexões.

Você sabia que o cinema pode ser muito útil para isso?

Foi para entender melhor como é possível meditar com filmes que convidamos o Padre Lucas Mendes para uma conversa sobre o tema.

Confira a seguir.

Como a meditação faz parte da fé católica

MATHEUS BAZZO: Para começar, seria interessante dar um passo atrás, porque a palavra “meditação” às vezes parece alheia ao universo cristão, estando geralmente mais associada a práticas, por exemplo, de religiões orientais. Dessa forma, o que significa meditar? Como a meditação faz parte da fé católica?

PADRE LUCAS: A meditação na linguagem cristã e católica, sobretudo a partir do século XVI, tomou o sentido de exercícios espirituais, sendo uma forma mediada de alcançar um objetivo, que é a vida interior com Deus.

A diferença que podemos estabelecer entre a meditação cristã e a oriental é que toda meditação oriental não-cristã tende a um esvaziamento, isto é, chegar ao nada de si e numa diluição com a natureza ou algo do tipo. Na meditação cristã, não.

Nesse caso, trata-se de se preencher de Deus. Desse modo, em vez de abstrair os sentidos e todas as coisas em volta, o que há no exterior pode me ajudar a meditar porque eu preciso me preencher de Deus. Por isso, podemos meditar a partir da leitura das Sagradas Escrituras ou numa adoração ao Santíssimo Sacramento.

MATHEUS BAZZO: Como a imaginação nos auxilia a meditar?

PADRE LUCAS: Para responder essa pergunta, vou recorrer ao exemplo da meditação inaciana, que propõe nos colocarmos nas cenas da Bíblia. Por exemplo: o texto de Jesus e a mulher samaritana à beira do poço.

Durante essa meditação, sou chamado a olhar, ainda que mentalmente, para a fisionomia dessa mulher, imaginar como era a região em torno daquele poço, a importância dele para o povo daquele lugar, etc. Daqui a pouco, posso me sentar ao lado daquelas duas pessoas e ouvir o que elas falam.

No momento em que somos mais um personagem da cena, começamos a colher frutos espirituais, pensando em como aquilo dialoga com a nossa própria vida, e isso nos auxilia em nossa conversão, em nosso caminho espiritual.

MATHEUS BAZZO: Penso que esse exercício de se colocar numa cena como a que o senhor mencionou também pode favorecer a caridade, porque de alguma forma, durante esse processo, nós somos levados a nos colocar no lugar do outro e imaginar o que ele está passando. O senhor acha que isso é possível?

PADRE LUCAS: Ouvindo você falar, fico pensando na nossa vida cotidiana e em quantas e quantas vezes, como ao ir ao trabalho, nós passamos pelos mesmos lugares, pelas mesmas ruas, pelas mesmas praças, encontramos as mesmas pessoas, mas não nos sentimos naquele contexto.

É como se faltasse criar uma relação com o outro, no sentido de haver uma maior proximidade, de conhecer o seu sofrimento. À medida que não somos capazes de nos colocar no lugar do outro, de nos compadecer, é como se fôssemos empobrecendo, tornando-nos menos humanos. Se eu não me compadeço de alguém que passa fome, eu estou muito distante da realidade, muito distante de mim mesmo e muito distante de Deus. O processo de meditação e contemplação das coisas me ajuda a conectar novamente os fios que estavam soltos.

MATHEUS BAZZO: Sem os atos de caridade, a meditação pode ser pouco frutífera? Como se relaciona a meditação e os nossos atos?

PADRE LUCAS: Ao falar de meditação, nós estamos no âmbito da fé e da relação com Deus, e isso necessariamente deve me conduzir a obras. Se alguém passa o dia inteiro rezando, mas ao encontrar com a esposa dentro de casa não é capaz de perguntar como foi seu dia ou como estão os filhos, parece que houve algum problema com aquela oração.  Na oração, nós nos colocamos diante de Deus, recebemos graças, mas elas não param em nós, elas vão gerando frutos. Do contrário, estamos fugindo da realidade e a meditação vira uma abstração.

Relação entre a meditação e as artes

MATHEUS BAZZO: Diz-se que os vitrais das catedrais antigas eram como a bíblia dos analfabetos, no sentido de que as pessoas sem acesso às escrituras podiam conhecer algo daquelas narrativas contemplando as imagens. Antes de falar da contribuição que o cinema pode dar à meditação, como a arte de maneira geral se relaciona com esse tema?

PADRE LUCAS: Nas catacumbas do início do cristianismo nós já encontramos representações de cenas dos evangelhos, de martírios, etc. Essa arte protocristã era uma maneira de indicar a quem pisasse naqueles lugares que ali era um lugar sagrado. Desde o começo com essas pinturas, a arte já se prestava ao papel de oferecer uma mediação entre nosso intelecto, a nossa razão, e a fé.

Ao longo do tempo, essas representações foram evoluindo, até chegarmos, por exemplo, aos vitrais que você mencionou. E uma observação: de alguma maneira, os vitrais se relacionam com o cinema, porque é quando a luz os atravessa que eles ganham mais vida, mais brilho, mais realismo e ficam ainda mais atraentes. Um belo vitral quase força em nós uma meditação.

MATHEUS BAZZO: Para o filósofo russo Pavel Florenski, a liturgia é a síntese de todas as artes. Ele diz isso no sentido de que ali tudo é colocado em sua máxima finalidade, que é servir a Deus: a música, a arquitetura, o olfato, o paladar, os gestos, etc. A liturgia nos preenche em todos os sentidos. Partindo disso, podemos dar um salto para a nossa conversa e perceber que o cinema, ao seu modo, também reúne diferentes elementos de expressão: música, fotografia, teatro, literatura, etc. Um filme pode se aproveitar desse potencial para também preencher nosso imaginário em direção a uma meditação frutífera?

“A liturgia é a síntese de todas as artes”

Pavel Florensky

PADRE LUCAS: Essa comparação da liturgia com o cinema é muito interessante de se pensar. Lá nós também temos um roteiro a seguir e devemos utilizar as palavras e os gestos corretos, como um ator num filme. Se não houver isso e os materiais necessários — no caso, o pão e o vinho — não haverá missa. Guardadas as proporções, eu acredito que o cinema também pode nos conduzir ao transcendente, por meio de um bom roteiro, uma boa fotografia, uma boa música, etc. ~

Quando eu vejo um bom filme, como os que contam a história das vidas de santos ou mesmo alguns que nem são propriamente cristãos, eu noto que conseguiram extrair alguma coisa muito especial e que neles aparecem vários elementos condensados. Entrar em contato com eles já é uma forma de meditação.

Ao ver um filme sobre São Padre Pio, como não ficar motivado a travar uma batalha espiritual de verdade? Como ver um filme sobre São João Paulo II e não querer ser um homem profundamente ligado ao seu tempo? Eu, particularmente, gosto muito de filmes com temática de guerra porque me ajudam a refletir sobre o heroísmo, por exemplo. Eu não tenho dúvida de que o cinema pode nos ajudar a adquirir boas referências.

MATHEUS BAZZO: Esse período histórico que vivemos, desde a década de 60 em diante, é como se fosse um período de descrença e de uma necessidade semelhante à de São Tomé, que necessitou ver as chagas de Cristo para crer. Talvez o papel do cinema nesse contexto seja o de poder mostrar aos “Tomés” de hoje determinadas coisas.

PADRE LUCAS: É interessante que o texto bíblico diz que Tomé viu e falou: “Meu Senhor, meu Deus.” Ele não precisou tocar. Ver o Senhor ressuscitado junto com o testemunho daquela comunidade de fé o conduziu a crer. Tendo isso em vista, dá para pensar o tamanho do papel de evangelização que o cinema pode cumprir, dentro dessa sociedade do espetáculo em que vivemos. Não devemos negligenciá-lo. Imagino como seria Deus dizendo que Ele nos deu uma ferramenta muito bacana e nós não soubemos aproveitar.

Meditando com filmes – exemplos

MATHEUS BAZZO: Podemos falar agora de algumas referências e exemplos. Na Lumine, recentemente estrearam dois filmes que consideramos muito apropriados à meditação quaresmal: Barrabás e Silêncio.

O primeiro é um exercício imaginativo de como teria sido a vida de Barrabás após os eventos da Crucificação, especulando até a respeito de uma possível conversão dele. Já no outro filme, dois padres jesuítas que viajam ao Japão são presos, torturados e forçados a abdicar de sua fé, ao que resistem o máximo possível, à espera de um sinal divino.

Em um filme, Deus tenta de várias formas trazer Barrabás para perto; no outro, por motivos misteriosos, Ele parece calar, sem manifestar-se, ao menos explicitamente, aos padres. São filmes que nos fazem pensar nos caminhos que Deus escolhe para estar em nossas vidas e também nesta ferramenta que Ele costuma utilizar, presente num dos títulos: o Silêncio. Como o senhor percebe essa dupla de filmes? Como o silêncio nos auxilia em nossas meditações?

Silêncio, de Masahiro Shinoda

PADRE LUCAS: A questão do silêncio foi tratada com frequência por Bento XVI, sobretudo ao falar de liturgia. Ele pedia aos padres para que houvesse momentos de silêncio após a homilia ou após a comunhão, de modo que o silêncio externo permitisse o diálogo interior.

Em relação aos dois filmes, sabemos que Deus nunca se cala completamente, seja de uma forma mais eloquente, na fala ou chamando através de sinais, pessoas e causas segundas, como em Barrabás, ou através de um silêncio que é frutuoso. Nesse sentido, lembramos as noites escuras de que fala São João da Cruz ou também do deserto: essas são imagens e expressões que ajudam a entender que o silêncio é repleto da voz de Deus.

No filme Silêncio, o padre parece que não sente Deus, não percebe a realidade do chamado de Deus, como se fosse até abandonado por Ele. Porém, de certo modo, essa é uma maneira de Deus falar.

Se a relação com Deus fosse sempre epidérmica, Deus se tornaria quase um objeto muito fácil de ser apreendido e eu teria talvez a tentação de acreditar que ele já teria me falado tudo que teria para falar. Não é assim. São João da Cruz dizia que há algo de Deus que é inacessível e fica escondido

Na minha trajetória de vida eu vivi esse deserto. Nos três primeiros anos da faculdade de teologia, eu tinha convicção do chamado de Deus para mim, da minha vocação para parte e da Sua existência, mas eu ia ao sacrário e não conseguia alcançar o que estava lá. Até que em determinado momento começou a chover naquele meu deserto, e aquele silêncio foi ficando eloquente. Notei que nos momentos em que Deus parecia se retirar, ele estava dizendo para mim que eu não era obrigado a estar ali, que eu tinha meu espaço de liberdade, e que eu só seria padre se eu realmente quisesse.

Nesses momentos em que Deus se retira da história, fica mais claro que o homem é livre. Se Deus passasse o tempo inteiro falando, seríamos forçados a responder, correndo o risco de atender a Ele como quem atende, ainda que sem vontade, a uma criança insistente. Ao retirar o time de campo, Deus nos faz perceber melhor a nossa realidade, e que devemos dar uma resposta pessoal àquele silêncio. É muito importante aprender a querer não apenas que Deus fale, mas ser quem propõe o diálogo com Ele.

Barrabás, de Richard Fleischer

Bento XVI, quando vai a Auschwitz, olha para aquilo e pergunta: “Deus, onde tu estavas?” Nós podemos interpretar essa pergunta como se ela referisse ao lugar que Deus ocupava no coração dos homens naquele momento histórico, mas por que não interpretar como sendo a maneira daquele homem de profunda fé demonstrar um espanto diante do absurdo que é a suposta ausência de Deus ali?

Da mesma forma, podemos refletir: por que o silêncio de Deus diante da morte do Filho na cruz? A minha interpretação espiritual diante disso tudo é de que é preciso o silêncio. Não à toa, da celebração da Sexta da Paixão até a Vigília Pascoal, na Igreja não se celebra nenhum tipo de sacramento, a não ser a reconciliação. Esse silêncio só será rompido pela Vigília Pascoal. Por que isso? Porque Deus silencia.

Tem momentos da história que são assim. Em compensação, há também momentos em que ele fala muito, como foi no início do cristianismo e o filme Barrabás dá a ver que era um momento em que a Palavra precisava se espalhar rápido e as pessoas precisavam ouvi-Lo. Daí a profusão de dons, carismas, milagres. Portanto, quando Ele silencia é porque Ele então não existe? Pelo contrário, é porque Ele existe e quer que os homens se dêem conta do espaço de liberdade que eles possuem. Na relação entre o calar e o falar de Deus, está o espaço para a liberdade humana. Em algum momento Ele diz que cada um de nós precisa dar um passo por conta própria, porque não somos um fantoche nem uma marionete.

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