Medo e desejo: o primeiro filme de Stanley Kubrick
Por Redação Lumine
|
13.jun.2025
Midle Dot

Lançado em 1953, Medo e Desejo é o primeiro filme de longa-metragem dirigido por Stanley Kubrick. Embora o filme contenha várias qualidades e características que o aproximam das produções mais conhecidas do cineasta, ele ficou muito tempo fora de circulação — a pedido do próprio Kubrick, que o considerava “um filme muito pretensioso”.

Contudo, depois de seu lançamento em DVD e de contínuas exibições públicas, o filme foi sendo redescoberto e novas geração de cinéfilos e admiradores de Kubrick puderam conhecer essa sua primeira obra.

Stephen Coit em Medo e Desejo

Medo e Desejo teve uma produção modesta e contou com uma equipe bem reduzida — 6 atores, alguns técnicos, um assistente, e o próprio Kubrick, que acumulou diversas funções durante o processo: além de colaborar com o roteiro e dirigir o filme, ele também foi o diretor de fotografia, figurinista e, na pós-produção, o editor. O dinheiro para a produção — aproximadamente dez mil dólares — foi emprestado do pai e do tio de Kubrick.

Para acelerar a produção, Kubrick optou por não captar o som direto das cenas e dublar o filme todo em estúdio. Ainda que essa decisão tenha acelerado a filmagem, a sincronização posterior dos diálogos acrescentou um custo de trinta mil dólares à produção.

Se por um lado essa escassez de meios e esses problemas inesperados tenham resultado em limitações que são visíveis no filme, por outro lado foram circunstâncias que provocaram soluções criativas muito interessantes — como a escolha de usar os mesmos atores para interpretar tanto a tropa de soldados que é protagonista do filme quanto a tropa de antagonistas — e contribuíram de modo decisivo para a consolidação de Kubrick como cineasta.

Em uma entrevista concedida em 1970, ele demonstrou o quanto suas primeiras experiências de direção foram importantes:

A melhor educação que se pode receber no cinema é fazer um filme. Eu aconselharia a qualquer diretor novato a tentar realizar um filme por si mesmo. Mesmo um curta-metragem de três minutos vai lhe ensinar muita coisa. Sei que tudo o que fiz no início da minha carreira foi, em microcosmo, o que faço hoje como diretor e produtor. Há muitos aspectos não criativos na realização de um filme que devem ser superados e todos serão encontrados mesmo na produção de um filme pequeno: as finanças, a organização do tempo, as taxas… É raro conhecer um ambiente artístico sem entraves quando se faz um filme, e ser capaz de aceitar isso é essencial.

Mais tarde, essa visão do diretor como alguém que não se preocupa apenas com as decisões artísticas da realização de um filme determinaria o destino de Kubrick em Hollywood — neste caso, a sua saída do sistema hollywoodiano e a sua ida para o Reino Unido. Ao buscar independência, Kubrick conseguiu fazer o que poucos diretores de sua geração conseguiram: conciliar uma visão extremamente particular da arte do cinema — realizando projetos que nasciam de sua vontade pessoal — com um relativo sucesso comercial, o suficiente para garantir a sua liberdade artística.

Mas, para além dessas questões práticas de produção, Medo e desejo é um filme interessante em si mesmo — ainda que suas qualidades sejam intensificadas quando as consideramos a partir da comparação deste primeiro filme com os filmes posteriores realizados por Kubrick.

O primeiro ponto em comum é a obsessão de Kubrick pela guerra, tema ao qual ele voltaria nos filmes Glória feita de sangue, Dr. Fantástico e Nascido para matar.

George C. Scott em Glória Feita de Sangue

Em Medo e desejo, a guerra não é abordada necessariamente pelo seu lado histórico, mas, assim como nos outros filmes, ela aparece como uma circunstância que privilegia a abordagem de questões existenciais. Neste aspecto específico, o título é autoexplicativo: já no início do filme ouvimos um narrador que “introduz o conflito” para o espectador. Enquanto vemos o panorama de uma floresta, cenário em que a história se desenvolverá, ele diz: “Há uma guerra nesta floresta. Não é uma guerra que já tenha findado, ou alguma que ainda virá. É uma guerra qualquer. E os inimigos que combatem nela não existem, a menos que acreditemos neles. Por isso essa floresta, e tudo o que faz parte dela, não faz parte da História. Apenas as formas imutáveis do medo, da dúvida e da morte pertencem ao nosso mundo.” Essa introdução deixa bem claro que o filme não tem o objetivo de retratar uma realidade histórica, mas o de usar o contexto da guerra para propor uma reflexão sobre outros temas: como os indivíduos lidam com seus piores medos quando são confrontados com o absurdo da guerra?

O ator Kenneth Harp interpretando dois personagens distintos: o soldado Corby e o General das tropas inimigas

O filme aborda a dualidade da natureza humana, mostrando como a situação extrema da guerra pode despertar os piores instintos dos homens — nesse aspecto, o uso já citado dos mesmos atores para retratar tanto os protagonistas quanto os antagonistas adquire um significado filosófico: é como se fosse um espelho, mostrando que o mal que está no coração do outro é o mesmo mal que pode estar em nosso coração.

Na forma de uma alegoria poética, as situações apresentadas sublinham a ideia de que, além dos inimigos externos, os verdadeiros inimigos são os internos — para sobreviver àquela situação, tanto no sentido material, quanto no sentido psicológico e espiritual, cada soldado deve confrontar seus próprios medos e impulsos: a sua mortalidade e o aparente absurdo da vida.

Nesse sentido, a particularidade de cada reação apresenta um ponto destoante da visão que seria predominante na obra posterior de Kubrick. Se em Dr. Fantástico, por exemplo — filme que termina com a explosão de uma bomba nuclear que provavelmente destruirá a humanidade inteira — a liberdade individual será completamente sufocada pelas instituições burocráticas do estado moderno, em Medo e desejo os indivíduos ainda têm certa liberdade de escolha.

Virginia Leith em Medo e desejo

Assim, apesar das ressalvas do próprio cineasta, o seu primeiro filme demonstra-se essencial para compreendermos a origem das suas preocupações — especialmente quando pensamos na relação entre a natureza individual, a violência, o poder e a busca pelo sentido da vida. Ao assisti-lo, o espectador terá uma perspectiva inestimável das origens da obra de um dos maiores diretores de cinema do século XX, como ele moldou a sua visão única para construir filmes poderosos e inquietantes, forçando o público a uma profunda reflexão sobre a existência humana.


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Lançado em 1953, Medo e Desejo é o primeiro filme de longa-metragem dirigido por Stanley Kubrick. Embora o filme contenha várias qualidades e características que o aproximam das produções mais conhecidas do cineasta, ele ficou muito tempo fora de circulação — a pedido do próprio Kubrick, que o considerava “um filme muito pretensioso”.

Contudo, depois de seu lançamento em DVD e de contínuas exibições públicas, o filme foi sendo redescoberto e novas geração de cinéfilos e admiradores de Kubrick puderam conhecer essa sua primeira obra.

Stephen Coit em Medo e Desejo

Medo e Desejo teve uma produção modesta e contou com uma equipe bem reduzida — 6 atores, alguns técnicos, um assistente, e o próprio Kubrick, que acumulou diversas funções durante o processo: além de colaborar com o roteiro e dirigir o filme, ele também foi o diretor de fotografia, figurinista e, na pós-produção, o editor. O dinheiro para a produção — aproximadamente dez mil dólares — foi emprestado do pai e do tio de Kubrick.

Para acelerar a produção, Kubrick optou por não captar o som direto das cenas e dublar o filme todo em estúdio. Ainda que essa decisão tenha acelerado a filmagem, a sincronização posterior dos diálogos acrescentou um custo de trinta mil dólares à produção.

Se por um lado essa escassez de meios e esses problemas inesperados tenham resultado em limitações que são visíveis no filme, por outro lado foram circunstâncias que provocaram soluções criativas muito interessantes — como a escolha de usar os mesmos atores para interpretar tanto a tropa de soldados que é protagonista do filme quanto a tropa de antagonistas — e contribuíram de modo decisivo para a consolidação de Kubrick como cineasta.

Em uma entrevista concedida em 1970, ele demonstrou o quanto suas primeiras experiências de direção foram importantes:

A melhor educação que se pode receber no cinema é fazer um filme. Eu aconselharia a qualquer diretor novato a tentar realizar um filme por si mesmo. Mesmo um curta-metragem de três minutos vai lhe ensinar muita coisa. Sei que tudo o que fiz no início da minha carreira foi, em microcosmo, o que faço hoje como diretor e produtor. Há muitos aspectos não criativos na realização de um filme que devem ser superados e todos serão encontrados mesmo na produção de um filme pequeno: as finanças, a organização do tempo, as taxas… É raro conhecer um ambiente artístico sem entraves quando se faz um filme, e ser capaz de aceitar isso é essencial.

Mais tarde, essa visão do diretor como alguém que não se preocupa apenas com as decisões artísticas da realização de um filme determinaria o destino de Kubrick em Hollywood — neste caso, a sua saída do sistema hollywoodiano e a sua ida para o Reino Unido. Ao buscar independência, Kubrick conseguiu fazer o que poucos diretores de sua geração conseguiram: conciliar uma visão extremamente particular da arte do cinema — realizando projetos que nasciam de sua vontade pessoal — com um relativo sucesso comercial, o suficiente para garantir a sua liberdade artística.

Mas, para além dessas questões práticas de produção, Medo e desejo é um filme interessante em si mesmo — ainda que suas qualidades sejam intensificadas quando as consideramos a partir da comparação deste primeiro filme com os filmes posteriores realizados por Kubrick.

O primeiro ponto em comum é a obsessão de Kubrick pela guerra, tema ao qual ele voltaria nos filmes Glória feita de sangue, Dr. Fantástico e Nascido para matar.

George C. Scott em Glória Feita de Sangue

Em Medo e desejo, a guerra não é abordada necessariamente pelo seu lado histórico, mas, assim como nos outros filmes, ela aparece como uma circunstância que privilegia a abordagem de questões existenciais. Neste aspecto específico, o título é autoexplicativo: já no início do filme ouvimos um narrador que “introduz o conflito” para o espectador. Enquanto vemos o panorama de uma floresta, cenário em que a história se desenvolverá, ele diz: “Há uma guerra nesta floresta. Não é uma guerra que já tenha findado, ou alguma que ainda virá. É uma guerra qualquer. E os inimigos que combatem nela não existem, a menos que acreditemos neles. Por isso essa floresta, e tudo o que faz parte dela, não faz parte da História. Apenas as formas imutáveis do medo, da dúvida e da morte pertencem ao nosso mundo.” Essa introdução deixa bem claro que o filme não tem o objetivo de retratar uma realidade histórica, mas o de usar o contexto da guerra para propor uma reflexão sobre outros temas: como os indivíduos lidam com seus piores medos quando são confrontados com o absurdo da guerra?

O ator Kenneth Harp interpretando dois personagens distintos: o soldado Corby e o General das tropas inimigas

O filme aborda a dualidade da natureza humana, mostrando como a situação extrema da guerra pode despertar os piores instintos dos homens — nesse aspecto, o uso já citado dos mesmos atores para retratar tanto os protagonistas quanto os antagonistas adquire um significado filosófico: é como se fosse um espelho, mostrando que o mal que está no coração do outro é o mesmo mal que pode estar em nosso coração.

Na forma de uma alegoria poética, as situações apresentadas sublinham a ideia de que, além dos inimigos externos, os verdadeiros inimigos são os internos — para sobreviver àquela situação, tanto no sentido material, quanto no sentido psicológico e espiritual, cada soldado deve confrontar seus próprios medos e impulsos: a sua mortalidade e o aparente absurdo da vida.

Nesse sentido, a particularidade de cada reação apresenta um ponto destoante da visão que seria predominante na obra posterior de Kubrick. Se em Dr. Fantástico, por exemplo — filme que termina com a explosão de uma bomba nuclear que provavelmente destruirá a humanidade inteira — a liberdade individual será completamente sufocada pelas instituições burocráticas do estado moderno, em Medo e desejo os indivíduos ainda têm certa liberdade de escolha.

Virginia Leith em Medo e desejo

Assim, apesar das ressalvas do próprio cineasta, o seu primeiro filme demonstra-se essencial para compreendermos a origem das suas preocupações — especialmente quando pensamos na relação entre a natureza individual, a violência, o poder e a busca pelo sentido da vida. Ao assisti-lo, o espectador terá uma perspectiva inestimável das origens da obra de um dos maiores diretores de cinema do século XX, como ele moldou a sua visão única para construir filmes poderosos e inquietantes, forçando o público a uma profunda reflexão sobre a existência humana.


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