“O mensageiro do diabo”, de Charles Laughton

Aclamado pela crítica como um dos cem melhores filmes da história, O mensageiro do diabo é um conto de fadas sombrio situado na época da Grande Depressão americana.

Numa pequena cidade do interior, uma viúva e seus filhos recebem a visita de um forasteiro, que se apresenta como um pastor religioso. Sob sua pele de cordeiro, porém, habita um perigoso assassino, cuja intenção é roubar uma fortuna escondida na casa da família.

Esse estranho homem, vestido de preto e trazendo as palavras “amor” e “ódio” tatuadas em cada uma das mãos, faz discursos que, em sua superfície, parecem ter um sentido religioso, mas na verdade não representam nada além de violência e vingança. Ele é a encarnação do Mal.

O ator Robert Mitchum em cena do filme "O mensageiro do diabo", de Charles Laughton
Robert Mitchum em cena de O mensageiro do diabo

Diante de suas ameaças, uma força se manifesta em oposição, na forma de uma mulher bondosa, que dedica a vida a cuidar de crianças e sacrificar-se por elas, tratando a todas com benevolência e verdadeira misericórdia. Em síntese, essa é a história do conflito que nos é apresentado em O mensageiro do diabo.

Trata-se de um filme bastante singular, que mistura características de vários gêneros cinematográficos e dialoga com diferentes épocas do cinema: é um suspense psicológico à maneira de Hitchcock, com tons de humor negro, de melodrama clássico, de terror surrealista, de expressionismo, de noir, de drama familiar, de filme de aventura. Todas essas características fazem com que seja um filme inclassificável.

Baseado no livro do escritor Davis Grubb e roteirizado pelo escritor e jornalista James Agee, o filme também é uma das primeiras reproduções cinematográficas de um estilo que viria a se tornar umas das grandes tradições literárias dos Estados Unidos: o gótico sulista.

O “gótico” sulista

O gótico sulista é um estilo literário presente em obras de autores como William Faulkner, Flannery O’connor e Carson McCullers. Em suas histórias, encontramos temas como a pobreza, a violência, a decadência, o sexo, o alcoolismo e a culpa; personagens perturbadores, loucos e com uma grande ligação com o mundo espiritual. A ambientação das histórias apresenta elementos grotescos — como nos romances góticos europeus do século XIX — transpostos para a geografia do sul dos Estados Unidos.

Podemos observar esses elementos em O mensageiro do diabo: a atmosfera do filme todo é tenebrosa: mesmo as paisagens que eram para ser idílicas apresentam algum elemento macabro; até um instante de descontração como o de crianças brincando de roda não deixa de ser sinistro quando a cantiga que elas cantam fala de um “homem que foi enforcado”.

cena do filme "O mensageiro do diabo", de Charles Laughton

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Contudo, essa atmosfera de pesadelo é compensada pela beleza presente nas imagens do filme. Como nas histórias dos principais autores do gótico sulista (Faulkner e O’connor, por exemplo), no meio de tantos horrores aparecem fragmentos de beleza e de esperança.

Numa expressão muito feliz, o crítico de cinema Terrence Rafferty disse que o gótico sulista faz com que “o horror seja lírico” e que “é um estilo que confere um tipo estranho de brilho aos aspectos mais obscuros da condição humana”.

Encontramos esse brilho nas composições visuais de O mensageiro do diabo, assinadas por Charles Laughton (diretor do filme) e por Stanley Cortez (diretor de fotografia).

Imaginação visual

Além de serem belas, as imagens do filme são altamente significativas. O filme inteiro é construído por fortes contrastes, que contribuem para a simbologia do enredo — o bem contra o mal — e criam a atmosfera de sonho, de fábula e de suspense que perpassa toda a história.

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O estilo predominante das imagens é o mesmo presente no movimento cinematográfico que ficou conhecido como expressionismo alemão: uma iluminação baseada no jogo entre luz e sombras, exploração significativa dos cenários e, numa cena específica, até mesmo os movimentos lentos como os dos personagens monstruosos que eram comuns nos filmes daquele movimento.

Lillian Gish em cena do filme "O mensageiro do diabo", de Charles Laughton
Lillian Gish em O mensageiro do diabo

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O filme também explora vários elementos da linguagem cinematográfica que, à época de seu lançamento, eram muito difíceis de serem executados: tomadas aéreas, justaposições de imagens, profundidade de campo, cenas debaixo d’água.

Tudo isso contribui para que as imagens criadas estejam em harmonia com a história que está sendo contada e, individualmente, sejam assustadoras, impactantes e poéticas. De fato, é um filme cujas imagens apresentam um profundo poder de ficarem gravadas na memória do espectador.

Conjunto feliz de escolhas

Na apreciação dos filmes, geralmente os críticos costumam abordar as características que são comuns em determinados cineastas — características que são observadas no conjunto de vários filmes. No caso de Charles Laughton, diretor de O mensageiro do diabo, não existem termos de comparação. Essa foi a única produção que ele dirigira.

Quando produziu o filme, Laughton era um ator famoso, tendo participado de filmes como Rembrandt (1936), A estalagem maldita (1939), O corcunda de Notre-dame (1939) e Agonia de amor (1947). 

Charles Laughton com Alfred Hitchcock e Gregory Peck no set de Agonia de Amor
Charles Laughton com Alfred Hitchcock e Gregory Peck no set de Agonia de Amor (1947)

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Entretanto, embora seja sua estreia na direção, todas as suas escolhas artísticas foram muito felizes e resultaram na criação desse clássico tão singular: além das características já citadas aqui (cinematografia, imaginação visual, diálogo com a literatura, mistura de gêneros, etc.), boa parte da força do filme está também nas atuações e no uso muito particular da música.

A escolha dos atores é perfeita para cada um dos personagens: no personagem do pregador psicopata Powell, encontramos Robert Mitchum, astro dos filmes policiais, que consegue equilibrar exatamente o tom de horror e de comédia pedido pelo personagem.

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Na personagem de Willa Carter, a viúva perseguida por Powell, encontramos Shelley Winters, que consegue interpretar com muita propriedade os sentimentos de abnegação, de pureza e ao mesmo tempo de impotência frente ao mal.

As crianças também estão muito bem, principalmente Billy Chapin, que interpreta o menino John Harper. É um personagem importante dentro da trama e ilumina vários momentos com grande vivacidade.

Shelley  Winters como Willa Carter em cena do filme "O mensageiro do diabo", de Charles Laughton
Shelley Winters como Willa Carter

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E há a grande estrela Lilian Gish, no papel de Rachel Cooper, a senhora que acolhe os órfãos e os protege do mal. A presença de Gish é muito importante porque, além de apresentar uma ótima performance, ela também serve para inscrever o Mensageiro do diabo dentro da tradição cinematográfica americana. Gish trabalhou com os grandes pioneiros do cinema e vários dos melhores filmes da era silenciosa — como Lírio Partido, Vento e Areia e Órfãs da tempestade — foram protagonizados por ela.

Na época do lançamento, a luta entre o bem e o mal representada em O mensageiro do Diabo não encontrou seu público, pois o filme foi um fracasso de bilheteria, motivo pelo qual Laughton não dirigiu outras produções em Hollywood.

No entanto, ao longo das décadas, essa espécie de estranha união entre os universos de Flannery O’Connor e dos Irmãos Grimm obteve a admiração de um número cada vez maior de pessoas, que identificaram a grande beleza desse sombrio contos de fadas, alçando-o ao patamar de tesouro do cinema.

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