O Papa Francisco foi um Pontífice que nutriu uma íntima relação com as artes.
Durante o seu pontificado, foi grande o número de declarações a respeito do papel crucial da arte como instrumento de evangelização e da responsabilidade individual dos artistas na propagação do Evangelho de Cristo.
Em 2013, em uma de suas primeiras entrevistas concedidas como papa — ao padre Antonio Spadaro — ele descreveu várias de suas preferências artísticas. E, falou, especialmente, do cinema, citando seus filmes preferidos.
Oito anos mais tarde, quando da publicação do livro Lo sguardo: porta del cuore. Il cinema per una catechesi della contemporaneità (“O olhar: porta do coração. O cinema para uma catequese da contemporaneidade”), organizado por Emilio Bruno e Sergio Perugini, o papa concedeu uma entrevista na qual há um aprofundamento de sua visão sobre o cinema.
O volume recolhe reflexões sobre o valor educativo e catequético do cinema, a partir da experiência do magistério do Papa Francisco, que frequentemente faz referências cinematográficas em seus discursos e homilias.
O livro busca, justamente, sublinhar o papel do cinema como instrumento para educar o olhar, para promover a cultura do encontro, da memória e da esperança, especialmente no mundo contemporâneo marcado por desafios como a pandemia e a crise da comunicação humana.
Reproduzimos abaixo a entrevista completa.
Devo a minha cultura cinematográfica principalmente aos meus pais. Quando eu era criança, costumava frequentar o cinema do bairro, onde se projetavam até três filmes seguidos. Faz parte das belas lembranças da minha infância: meus pais me ensinaram a desfrutar da arte, em suas mais variadas formas. Aos sábados, por exemplo, junto com minha mãe e meus irmãos, ouvíamos as óperas transmitidas pela Rádio do Estado (hoje Rádio Nacional). Minha mãe nos fazia sentar perto do rádio e, antes de começar a transmissão, nos contava a trama da ópera. Quando uma ária importante estava prestes a começar, ela nos avisava: “Prestem atenção, esta é uma canção muito bonita.” Era algo maravilhoso. E depois havia os filmes no cinema, para os quais meus pais aplicavam o mesmo método: como faziam com as óperas, explicavam-nos os filmes para nos orientar.
Sim, entre os filmes que meus pais queriam absolutamente que conhecêssemos estavam justamente os do neorrealismo. Entre os dez e doze anos, creio ter assistido a todos os filmes com Anna Magnani e Aldo Fabrizi, incluindo Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, que amei muito. Para nós, crianças na Argentina, aqueles filmes foram muito importantes porque nos fizeram compreender em profundidade a grande tragédia da guerra mundial. Em Buenos Aires, conhecemos a guerra principalmente por meio dos muitos migrantes que chegaram: italianos, poloneses, alemães… Seus relatos abriram nossos olhos para um drama que não conhecíamos diretamente, mas foi também graças ao cinema que adquirimos uma consciência profunda dos seus efeitos.
Os filmes do neorrealismo formaram o nosso coração e ainda podem fazê-lo. Eu diria mais: esses filmes nos ensinaram a olhar a realidade com olhos novos. Fiquei muito contente com o fato de que este livro conseguiu captar esse aspecto fundamental: o valor universal daquele cinema e sua atualidade como instrumento importante para nos ajudar a renovar o nosso olhar sobre o mundo. Quanto precisamos hoje aprender a olhar! A difícil situação que estamos vivendo, marcada profundamente pela pandemia, gera preocupação, medo, desânimo: por isso, precisamos de olhos capazes de romper a escuridão da noite, de erguer o olhar além do muro para contemplar o horizonte.
Hoje é muito importante uma catequese do olhar, uma pedagogia para os nossos olhos, muitas vezes incapazes de contemplar no meio da escuridão a “grande luz” (Is 9,1) que Jesus vem trazer. Simone Weil, uma mística contemporânea, escreveu: “A compaixão e a gratidão descem de Deus e, quando são transmitidas por um olhar, Deus está presente no ponto onde os olhares se encontram.” Eis por que a reflexão sobre o olhar abre à transcendência. Como seria bonito redescobrir, através do cinema, a importância da educação para um olhar puro. Assim como o neorrealismo fez.
O olhar neorrealista é um olhar que provoca a consciência. A culpa dos pais é um filme de 1943 de Vittorio De Sica, que gosto muito de citar porque é belíssimo e rico de significados. Em muitos filmes, o olhar neorrealista foi o olhar das crianças sobre o mundo: um olhar puro, capaz de captar tudo, um olhar límpido por meio do qual podemos distinguir imediatamente e com nitidez o bem e o mal. Recordo as palavras do meu irmão Hieronymos, arcebispo ortodoxo de Atenas e de toda a Grécia, a propósito de uma das realidades mais duras do nosso tempo: “Quem vê os olhos das crianças que encontramos nos campos de refugiados é capaz de reconhecer imediatamente, na sua inteireza, a ‘falência’ da humanidade” (Discurso no Campo de Refugiados de Moria, Lesbos, 16 de abril de 2016).
Em muitas ocasiões e em tantos países diferentes, meus olhos encontraram os olhos das crianças — pobres e ricas, saudáveis e doentes, alegres e sofredoras. Ser olhado pelos olhos das crianças é uma experiência que todos conhecemos, que nos toca profundamente e que também nos obriga a um exame de consciência. O cinema neorrealista universalizou esse olhar das crianças: um olhar que é muito mais do que um simples ponto de vista, que hoje nos interroga ainda mais, num tempo em que a pandemia parece multiplicar as falências da humanidade. O que estamos fazendo para que as crianças possam nos olhar sorrindo e conservar um olhar límpido, rico de confiança e esperança? O que fazemos para que essa luz não lhes seja roubada, para que seus olhos não sejam perturbados e corrompidos?
Sim, A estrada da vida, de Fellini, é talvez o filme que mais amei. Identifico-me muito com esse filme, no qual encontramos uma referência implícita a São Francisco. Fellini soube dar uma luz inédita ao olhar sobre os últimos. Nesse filme, a narrativa sobre os últimos é exemplar e é um convite a preservar o precioso olhar deles sobre a realidade. Penso nas palavras que o Louco dirige a Gelsomina: “Você, pedrinha, tem um sentido nesta vida.” É um discurso profundamente imbuído de referências evangélicas. Mas penso em toda a trajetória de Gelsomina: com sua humildade, com seu olhar totalmente límpido, ela consegue amolecer o coração duro de um homem que havia esquecido como se chora. Esse olhar puro dos últimos é capaz de semear vida nos terrenos mais áridos. É um olhar de esperança, que sabe intuir a luz na escuridão: por isso, deve ser guardado.
Exato. São eles, os últimos, os pobres, os marginalizados, que nos trazem a salvação; é o seu olhar que nos pode restituir a fé e reacender a esperança. É preciso conservar puro o olhar dos últimos. É deles que devemos aprender a ver o mundo como ele é, sem as máscaras que às vezes nós mesmos usamos. Recordo que, no campo de refugiados de Lesbos, uma criança pequena me ofereceu um desenho: era o mar que engolira o sol, um barco que se afundava, pessoas que se afogavam. Aquele desenho era um grito que não pode ser silenciado, um olhar puro sobre a realidade atual. O olhar da criança não tem filtros; é verdadeiro. Se quisermos nos redescobrir verdadeiramente humanos, devemos deixar-nos evangelizar por elas.
Absolutamente. É importante voltar a partilhar, a viver experiências de encontro real, não mediadas somente pelas telas. Assistir a um filme juntos pode ajudar a educar o olhar, porque implica também aprender a ver com o olhar dos outros, a partilhar emoções, a refletir em conjunto. A cultura do encontro passa também por aqui. E o cinema, como instrumento de narração coletiva, pode desempenhar uma função muito importante: contar histórias que nos ajudem a encontrar sentido, que alarguem o nosso coração e o nosso olhar.
Contando histórias que saibam tocar o coração, que saibam fazer pensar, que saibam mostrar a beleza da vida também no meio das suas contradições. O cinema de esperança não é um cinema “adocicado”, não é feito de histórias “bonitinhas”, mas é um cinema que sabe mostrar fagulhas de luz no meio da escuridão, que sabe dar voz também às situações mais difíceis. Penso, por exemplo, em certos filmes iranianos contemporâneos, que conseguem narrar com grande delicadeza a complexidade da vida e da cultura daquele povo, revelando sempre uma abertura à esperança. O cinema pode ajudar a reencontrar razões para acreditar, para lutar, para amar. Pode ajudar-nos a não nos rendermos à lógica do descarte, a ver nos outros não inimigos ou concorrentes, mas irmãos e irmãs. Pode educar-nos para uma visão mais solidária, mais humana.
Como disse antes, A estrada da vida, de Fellini, é o filme que mais amo, talvez porque é o que melhor sintetiza aquilo que sinto ser a missão de cada um de nós: ser pequenos instrumentos do amor de Deus no mundo, mesmo quando não compreendemos totalmente o sentido do que vivemos. Gelsomina não entende tudo, mas sente que a sua vida tem um sentido dentro de um projeto maior. Isso é de uma beleza e de uma profundidade extraordinárias.
O Papa Francisco foi um Pontífice que nutriu uma íntima relação com as artes.
Durante o seu pontificado, foi grande o número de declarações a respeito do papel crucial da arte como instrumento de evangelização e da responsabilidade individual dos artistas na propagação do Evangelho de Cristo.
Em 2013, em uma de suas primeiras entrevistas concedidas como papa — ao padre Antonio Spadaro — ele descreveu várias de suas preferências artísticas. E, falou, especialmente, do cinema, citando seus filmes preferidos.
Oito anos mais tarde, quando da publicação do livro Lo sguardo: porta del cuore. Il cinema per una catechesi della contemporaneità (“O olhar: porta do coração. O cinema para uma catequese da contemporaneidade”), organizado por Emilio Bruno e Sergio Perugini, o papa concedeu uma entrevista na qual há um aprofundamento de sua visão sobre o cinema.
O volume recolhe reflexões sobre o valor educativo e catequético do cinema, a partir da experiência do magistério do Papa Francisco, que frequentemente faz referências cinematográficas em seus discursos e homilias.
O livro busca, justamente, sublinhar o papel do cinema como instrumento para educar o olhar, para promover a cultura do encontro, da memória e da esperança, especialmente no mundo contemporâneo marcado por desafios como a pandemia e a crise da comunicação humana.
Reproduzimos abaixo a entrevista completa.
Devo a minha cultura cinematográfica principalmente aos meus pais. Quando eu era criança, costumava frequentar o cinema do bairro, onde se projetavam até três filmes seguidos. Faz parte das belas lembranças da minha infância: meus pais me ensinaram a desfrutar da arte, em suas mais variadas formas. Aos sábados, por exemplo, junto com minha mãe e meus irmãos, ouvíamos as óperas transmitidas pela Rádio do Estado (hoje Rádio Nacional). Minha mãe nos fazia sentar perto do rádio e, antes de começar a transmissão, nos contava a trama da ópera. Quando uma ária importante estava prestes a começar, ela nos avisava: “Prestem atenção, esta é uma canção muito bonita.” Era algo maravilhoso. E depois havia os filmes no cinema, para os quais meus pais aplicavam o mesmo método: como faziam com as óperas, explicavam-nos os filmes para nos orientar.
Sim, entre os filmes que meus pais queriam absolutamente que conhecêssemos estavam justamente os do neorrealismo. Entre os dez e doze anos, creio ter assistido a todos os filmes com Anna Magnani e Aldo Fabrizi, incluindo Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini, que amei muito. Para nós, crianças na Argentina, aqueles filmes foram muito importantes porque nos fizeram compreender em profundidade a grande tragédia da guerra mundial. Em Buenos Aires, conhecemos a guerra principalmente por meio dos muitos migrantes que chegaram: italianos, poloneses, alemães… Seus relatos abriram nossos olhos para um drama que não conhecíamos diretamente, mas foi também graças ao cinema que adquirimos uma consciência profunda dos seus efeitos.
Os filmes do neorrealismo formaram o nosso coração e ainda podem fazê-lo. Eu diria mais: esses filmes nos ensinaram a olhar a realidade com olhos novos. Fiquei muito contente com o fato de que este livro conseguiu captar esse aspecto fundamental: o valor universal daquele cinema e sua atualidade como instrumento importante para nos ajudar a renovar o nosso olhar sobre o mundo. Quanto precisamos hoje aprender a olhar! A difícil situação que estamos vivendo, marcada profundamente pela pandemia, gera preocupação, medo, desânimo: por isso, precisamos de olhos capazes de romper a escuridão da noite, de erguer o olhar além do muro para contemplar o horizonte.
Hoje é muito importante uma catequese do olhar, uma pedagogia para os nossos olhos, muitas vezes incapazes de contemplar no meio da escuridão a “grande luz” (Is 9,1) que Jesus vem trazer. Simone Weil, uma mística contemporânea, escreveu: “A compaixão e a gratidão descem de Deus e, quando são transmitidas por um olhar, Deus está presente no ponto onde os olhares se encontram.” Eis por que a reflexão sobre o olhar abre à transcendência. Como seria bonito redescobrir, através do cinema, a importância da educação para um olhar puro. Assim como o neorrealismo fez.
O olhar neorrealista é um olhar que provoca a consciência. A culpa dos pais é um filme de 1943 de Vittorio De Sica, que gosto muito de citar porque é belíssimo e rico de significados. Em muitos filmes, o olhar neorrealista foi o olhar das crianças sobre o mundo: um olhar puro, capaz de captar tudo, um olhar límpido por meio do qual podemos distinguir imediatamente e com nitidez o bem e o mal. Recordo as palavras do meu irmão Hieronymos, arcebispo ortodoxo de Atenas e de toda a Grécia, a propósito de uma das realidades mais duras do nosso tempo: “Quem vê os olhos das crianças que encontramos nos campos de refugiados é capaz de reconhecer imediatamente, na sua inteireza, a ‘falência’ da humanidade” (Discurso no Campo de Refugiados de Moria, Lesbos, 16 de abril de 2016).
Em muitas ocasiões e em tantos países diferentes, meus olhos encontraram os olhos das crianças — pobres e ricas, saudáveis e doentes, alegres e sofredoras. Ser olhado pelos olhos das crianças é uma experiência que todos conhecemos, que nos toca profundamente e que também nos obriga a um exame de consciência. O cinema neorrealista universalizou esse olhar das crianças: um olhar que é muito mais do que um simples ponto de vista, que hoje nos interroga ainda mais, num tempo em que a pandemia parece multiplicar as falências da humanidade. O que estamos fazendo para que as crianças possam nos olhar sorrindo e conservar um olhar límpido, rico de confiança e esperança? O que fazemos para que essa luz não lhes seja roubada, para que seus olhos não sejam perturbados e corrompidos?
Sim, A estrada da vida, de Fellini, é talvez o filme que mais amei. Identifico-me muito com esse filme, no qual encontramos uma referência implícita a São Francisco. Fellini soube dar uma luz inédita ao olhar sobre os últimos. Nesse filme, a narrativa sobre os últimos é exemplar e é um convite a preservar o precioso olhar deles sobre a realidade. Penso nas palavras que o Louco dirige a Gelsomina: “Você, pedrinha, tem um sentido nesta vida.” É um discurso profundamente imbuído de referências evangélicas. Mas penso em toda a trajetória de Gelsomina: com sua humildade, com seu olhar totalmente límpido, ela consegue amolecer o coração duro de um homem que havia esquecido como se chora. Esse olhar puro dos últimos é capaz de semear vida nos terrenos mais áridos. É um olhar de esperança, que sabe intuir a luz na escuridão: por isso, deve ser guardado.
Exato. São eles, os últimos, os pobres, os marginalizados, que nos trazem a salvação; é o seu olhar que nos pode restituir a fé e reacender a esperança. É preciso conservar puro o olhar dos últimos. É deles que devemos aprender a ver o mundo como ele é, sem as máscaras que às vezes nós mesmos usamos. Recordo que, no campo de refugiados de Lesbos, uma criança pequena me ofereceu um desenho: era o mar que engolira o sol, um barco que se afundava, pessoas que se afogavam. Aquele desenho era um grito que não pode ser silenciado, um olhar puro sobre a realidade atual. O olhar da criança não tem filtros; é verdadeiro. Se quisermos nos redescobrir verdadeiramente humanos, devemos deixar-nos evangelizar por elas.
Absolutamente. É importante voltar a partilhar, a viver experiências de encontro real, não mediadas somente pelas telas. Assistir a um filme juntos pode ajudar a educar o olhar, porque implica também aprender a ver com o olhar dos outros, a partilhar emoções, a refletir em conjunto. A cultura do encontro passa também por aqui. E o cinema, como instrumento de narração coletiva, pode desempenhar uma função muito importante: contar histórias que nos ajudem a encontrar sentido, que alarguem o nosso coração e o nosso olhar.
Contando histórias que saibam tocar o coração, que saibam fazer pensar, que saibam mostrar a beleza da vida também no meio das suas contradições. O cinema de esperança não é um cinema “adocicado”, não é feito de histórias “bonitinhas”, mas é um cinema que sabe mostrar fagulhas de luz no meio da escuridão, que sabe dar voz também às situações mais difíceis. Penso, por exemplo, em certos filmes iranianos contemporâneos, que conseguem narrar com grande delicadeza a complexidade da vida e da cultura daquele povo, revelando sempre uma abertura à esperança. O cinema pode ajudar a reencontrar razões para acreditar, para lutar, para amar. Pode ajudar-nos a não nos rendermos à lógica do descarte, a ver nos outros não inimigos ou concorrentes, mas irmãos e irmãs. Pode educar-nos para uma visão mais solidária, mais humana.
Como disse antes, A estrada da vida, de Fellini, é o filme que mais amo, talvez porque é o que melhor sintetiza aquilo que sinto ser a missão de cada um de nós: ser pequenos instrumentos do amor de Deus no mundo, mesmo quando não compreendemos totalmente o sentido do que vivemos. Gelsomina não entende tudo, mas sente que a sua vida tem um sentido dentro de um projeto maior. Isso é de uma beleza e de uma profundidade extraordinárias.
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