CENA DO FILME 'DESCARTES' DE ROBERTO ROSSELLINI

A imagem essencial: o cinema filosófico de Roberto Rossellini

O italiano Roberto Rossellini possui uma das carreiras mais importantes da história do cinema.

O cineasta começou a fazer filmes ainda dentro do sistema de Benito Mussollini, e suas primeiras produções tratavam de uma temática nacionalista: La nave bianca (1941), Um piloto retorna (1942) e O homem da cruz (1943).

Mais tarde, após a queda do regime do ditador, Rossellini viria a ser um dos pioneiros do movimento que ficou conhecido como neorrealismo italiano.

Os filmes da sua famosa trilogia da guerra Roma, cidade aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, ano zero (1948) — ficariam sendo os seus filmes mais conhecidos, e projetariam o seu nome internacionalmente.

Alemanha, ano zero (1948)

Mas a filmografia de Rossellini vai muito além da “trilogia da guerra” e do neorrealismo. E, embora os seus outros filmes sejam pouco comentados, entre eles é possível encontrar um número considerável de obras-primas.

Uma característica comum da sua obra é a constante originalidade. Assim, após a sua fase mais ligada ao neorrealismo, Rossellini produziu alguns filmes com temática mística e religiosa, como O amor (1948), e uma biografia de São Francisco de Assis, chamada Francisco, arauto de Deus (1950).

Francisco, arauto de Deus (1950)

Mais tarde, ele entraria numa fase completamente nova e produziria um cinema de profunda introspecção psicológica, cujo tema principal seria a crise espiritual da Europa no período pós-guerra, já abordada em filmes anteriores, mas aprofundada nesses filmes a partir de uma perspectiva mais individual. São dessa fase, por exemplo, os filmes Stromboli (1950), Europa 51 (1952) e Viagem à Itália (1954).

Por serem filmes com uma estética inovadora, não resultaram no sucesso comercial que o cineasta já havia experimentado na época em que lançara a trilogia da guerra. Mas a profundidade e a importância desses filmes chamou a atenção da crítica cinematográfica, principalmente dos críticos da revista francesa Cahiers du cinéma (uma das publicações de crítica mais influentes da história, pois nas suas páginas nasceram vários conceitos que até hoje pautam o debate a respeito dos filmes e que foram consolidando o cinema como uma arte).

Depois do seu reconhecimento crítico, Rossellini tentaria novamente produzir filmes que também pudessem lhe trazer algum sucesso comercial. Então, entre 1959 e 1961, ele dirigiu a chamada “tetralogia histórica”, em que se encontram filmes como De crápula a herói (1959) e Viva a Itália (1960).

Viva a Itália (1961)

Mas os filmes não foram tão bem sucedidos do ponto de vista econômico e, depois de alguns fracassos comerciais, o cineasta ficou desiludido com a “indústria do cinema”. Assim, a sua carreira passaria por uma transformação radical no que diz respeito ao seu estilo e às suas preocupações estéticas.

A partir de então, até o final da sua vida Rossellini só produziria filmes para a televisão.

O cinema como um instrumento pedagógico

Quando Rossellini optou por dedicar-se exclusivamente à direção de filmes para a televisão, essa era uma mídia em progressivo desenvolvimento. O sucesso da televisão provocou uma queda significativa no público que frequentava as salas de cinema. Foi a época em que criou-se um debate a respeito da “morte do cinema”.

E a situação do cinema italiano na década 70 foi ainda mais crítica do que em outros países. O chamado cinema de autor só sobreviveu na Itália graças à relação que estabeleceu com a televisão. E a emissora estatal RAI viria a se tornar a principal produtora de filmes do país.  

Roberto Rossellini

Contudo, não foram apenas questões econômicas e de produção que motivaram essa mudança drástica na carreira de Rossellini, mas um projeto artístico de grandes proporções: inspirado nos enciclopedistas do Iluminismo, Rossellini viu na televisão um veículo que poderia servir para instruir, informar e inspirar as pessoas.

Ao contrário de outros artistas e intelectuais que consideravam a televisão apenas como uma mídia voltada para o discurso publicitário, para o entretenimento e para “a alienação das massas”, Rossellini considerou que, se fosse usada com as intenções corretas, ela exerceria um papel pedagogicamente revolucionário dentro da cultura do seu tempo.

O messias (1975)

O “projeto enciclopédico” de Rossellini era gigantesco. Muitos dos filmes que o cineasta pretendia fazer permaneceram inconclusos (inclusive uma adaptação do livro Geografia da Fome, do cientista político brasileiro Josué de Castro). Mas, além desses, de 1964 a 1977, ano de seu falecimento, ele produziu onze obras de natureza didática para a televisão.

São filmes e séries que variam entre pequenas e grandes produções e que abordam os mais diferentes períodos históricos: dos tempos de Sócrates à Itália do século XX, passando pelas épocas de Cristo, de Santo Agostinho, pelo Renascimento e pelos séculos XVII, XVIII e XIX.

O Absolutismo: a ascensão de Luis XIV (1966)

Em algumas de suas obras anteriores — aquelas que apresentavam maior profundidade e um acabamento estético mais primoroso (como a trilogia da guerra ou os filmes da fase mais intimista protagonizados por Ingrid Bergman, por exemplo) — Rossellini já demonstrava uma preocupação com o que ele mesmo chamava de “crise espiritual do mundo moderno”, caracterizada por uma ausência de fé e por uma transformação total da cultura.

O retrato da história também está relacionado com essa preocupação de caráter mais filosófico. O que podemos perceber pelo modo como Rossellini resumiu os seus objetivos para produzir filmes históricos:

Eu tento reconstruir as civilizações, os costumes e as culturas, convencido de que, no fundo, o homem não muda quase nada. O que muda é apenas o contexto cultural. O ‘dado’ humano é permanente, enquanto os ‘dados’ culturais variam. 1 Entrevista citada em: Peter Brunette. Roberto Rossellini. University of California Press 1996, p. 299

Temos aí, então, nessa busca pelos “dados permanentes” da vida humana, a justificativa intelectual dos filmes produzidos nessa época. E é nesse contexto que aparecem as cinebiografias dos filósofos Sócrates, Santo Agostinho, Blaise Pascal e Descartes, realizadas entre 1971 e 1974.

A vida dos filósofos

Sócrates (1971)

Ao retratar a vida desses filósofos, Rossellini pretendia mostrar alguns momentos da história em que a consciência humana sofrera uma transformação radical.

Mas, além de sua justificativa intelectual, o que há em comum entre os filmes produzidos nessa época é a sua coerência estilística.

Rossellini era um cineasta muito consciente da sua arte.  O reconhecimento crítico da sua obra, a influência exercida sobre as novas gerações de cineastas e, sobretudo, as suas próprias declarações a respeito da arte do cinema demonstram que ele era um cineasta cujas escolhas artísticas sempre eram justificadas.

Isso significa que, para ele, o modo de contar as histórias era tão importante quanto as próprias histórias.

Nesse sentido, um cinema cujo objetivo era o de instruir não poderia ser um cinema que alienasse o espectador. Não poderia ser um cinema “espetacularizado”, que apelasse às emoções de modo gratuito, da mesma maneira que faz a publicidade. Deveria ser um cinema que desse espaço para o espectador contemplar a história contada e refletir a respeito dela.

Em entrevista ao crítico americano Andrew Sarris, Rossellini explicou a sua abordagem histórica desta forma:

Para mim, o que há de mais surpreendente, mais extraordinário e mais emocionante na realidade humana é precisamente o fato de que as ações nobres e os momentos importantes da história acontecem da mesma maneira e provocam a mesma impressão que os fatos ordinários da vida cotidiana. 2 Andrew Sarris. Interviews with film directors. Avon Books, 1967, p. 476.

Descartes (1974)

A partir dessa perspectiva, os filmes que retratam a vida dos filósofos apresentam uma espécie de sobriedade na construção das cenas, nas atuações e no ritmo de sua narrativa.

Rossellini não enfatiza os momentos em busca do que seria uma “emoção fácil”, ele apenas mostra os acontecimentos da história de maneira objetiva, empregando alguns recursos que privilegiam essa abordagem mais sóbria: predominância dos planos gerais, utilização estratégica do zoom, atuações “desdramatizadas” (com uma ou outra exceção, como, por exemplo, a de Xântipe, esposa de Sócrates).

As narrativas também não são “espetaculares”. Em geral, nós acompanhamos o cotidiano dos filósofos e vamos descobrindo como se deu o desenvolvimento do seu pensamento. São narrativas de ideias, mais do que de fatos, que mostram, justamente, como o pensamento desses filósofos surgiu do confronto entre o intelecto e a vida cotidiana.

Quando o espectador se acostuma com esse estilo menos dramático, mais sóbrio e mais objetivo (tão diferente da maioria dos filmes lançados atualmente), ele começa a perceber a beleza que existe nos detalhes, no texto, na possibilidade de conhecer, ainda que apenas pela imaginação, esses fragmentos tão importantes da história, ou, como queria o Rossellini, esses ‘dados’ permanentes da vida humana.

A imagem essencial

Santo Agostinho (1972)

Embora as cinebiografias dos filósofos realizadas por Rossellini possam ser consideradas “narrativas de ideias”, elas não são histórias baseadas em argumentos. Os filmes não têm o objetivo de convencer o espectador, mas apenas o de pintar um rico painel histórico, com a maior quantidade possível de detalhes.

É certo que a objetividade formal de Rossellini está relacionada a algumas características que podem ser encontradas no pensamento dos filósofos retratados, como, por exemplo, o amor de Sócrates pela razão e pela sabedoria; a piedade e o senso de justiça de Santo Agostinho; as investigações metafísicas de Pascal e, no caso de Descartes, o método científico. Em todo caso, não existe retórica nesses filmes.

O cineasta buscava por aquilo que ele chamava de “Imagem essencial”, que ele mesmo definiu assim:

“A imagem essencial, fundamental, na qual podemos condensar toda informação necessária. Quando alcançarmos isso, não haverá mais necessidade de proceder por argumentação; procederemos, de preferência, por indicações, por provas completas e essenciais das coisas como são. Quando redescobrirmos a imagem, seremos capazes de acumular em seu interior, de maneira contextualizada, uma grande quantidade de informação.” 3 APRÀ, Adriano (Org.). La Television Comme Utopie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2001. P. 187. citado em ‘Roberto Rossellini e a televisão’, disponível em: https://cinemaitalianorao.blogspot.com/2016/08/roberto-rossellini-e-televisao.html

Sócrates (1971)

Na primeira cena de Sócrates, por exemplo, vemos o muro da cidade de Atenas sendo derrubado. Temos aí uma “grande quantidade de informação” sintetizada em poucas imagens. Só mais tarde no filme ficaremos conhecendo o significado desse acontecimento e a sua importância seminal na história, mas ali, no momento em que a ação está sendo mostrada pela primeira vez, nada é explicado. Como disse Rossellini, nós vemos “as coisas como elas são”.

Isso se aplica a vários outros detalhes: o cenário, os figurinos, o comportamento dos cidadãos de Atenas, as próprias cenas, etc., mas principalmente aos momentos nos quais Sócrates dialoga filosoficamente com os outros personagens e nós vemos como as ideias mais profundas podem nascer das situações mais banais.

Já no segundo de seus “retratos filosóficos”, Rossellini quis contar a vida do filósofo francês Blaise Pascal. Para o cineasta, Pascal era o representante perfeito do conflito entre dois aspectos fundamentais da vida: a ansiedade científica e a piedade religiosa. Repetem-se, nesse filme, as características mencionadas da sobriedade, das atuações sem muito drama, etc., mas aqui há um espaço maior para a emoção e para alguns efeitos cinematográficos menos “objetivos”.

Pascal no leito de morte

Por exemplo: muitas vezes durante o filme a trilha sonora eletrônica cria uma atmosfera que busca representar o vazio e o infinito que são objeto do pensamento obsessivo de Pascal. Quando Pascal está moribundo, ouvimos uma espécie de respiração que é externa à cena. O crítico Peter Brunette diz que é como “se o próprio cosmos estivesse puxando o filósofo da terra” 4 Peter Brunette. Roberto Rossellini. University of California Press, 1996, p. 306 .

Além disso, no aspecto visual há um uso muito singular da técnica do chiaroscuro: em algumas imagens, os personagens “emergem” das sombras para a luz, jogo visual que reflete a ambiguidade temática do conflito entre a luz da razão e o que Pascal chama de “o desconhecido”.

Um exemplo do uso do chiaroscuro em Pascal (1972)

Por sua vez, o filme dedicado a Santo Agostinho não é propriamente uma biografia completa do santo, mas apenas uma descrição do tempo em que ele fora bispo da cidade de Hipona, na África. O principal objetivo de Rossellini ao contar a história de Agostinho era o de mostrar o contexto social em que se desenvolveram as ideias filosóficas do santo —como tais ideias se sustentam e servem para o fortalecimento do espírito nos tempos de crise. O filme retrata as consequências da queda do Império romano e mostra como Agostinho filosofava a partir da realidade e dos conflitos enfrentados todos os dias.

Santo Agostinho (1972)

Novamente não temos um filme espetacular, mas temos um conjunto de situações que sintetiza vários aspectos do pensamento agostiniano com muita clareza.

Em 1974, Rossellini produziu Descartes, que alguns consideram um dos ápices da sua obra. É um filme longo, com um ritmo bem lento e que também segue o ritmo das ideias, em vez de ser motivado por ações.

Descartes (1974)

Contudo, é um filme de uma beleza singular, porque é uma espécie de investigação da vida interior do filósofo. Há um respeito pelo “universo” criado, uma busca sincera por conhecê-lo minuciosamente e, nesse sentido, a forma do filme reflete as motivações do seu personagem principal, seu anseio por conhecer a realidade das coisas.

Em síntese, podemos dizer que assistir a esses quatro filmes é um profundo exercício de atenção.

Ao buscar a “imagem essencial”, Rossellini reafirmou que o cinema não é apenas um meio de entretenimento barato e de distração, mas uma arte verdadeira e uma forma de pensamento que faz parte do conjunto das grandes produções da humanidade.

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Os filmes Sócrates, Santo Agostinho, Pascal, Descartes, Roma, cidade aberta, Paisà e Alemanha, ano zero estão todos disponíveis na Lumine.


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