A beleza do cotidiano no cinema de Vittorio de Sica

Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, o mundo vivia um período de reconstrução.

Diante das ruínas físicas, morais e espirituais deixadas pelos confrontos, as pessoas buscavam formas de lidar com a desesperança e a desilusão.

Em meio à crise, a arte exerceria um papel importante.

As músicas, as pinturas, os livros e filmes poderiam dar forma aos sentimentos mais profundos das pessoas.

Assim, reconhecendo seus dramas nas obras de arte, o público iniciava um longo processo de cura, após ter sofrido com tantas lutas e perdas inumeráveis.

Nesse contexto, surgia na Itália um movimento artístico que iria revolucionar a maneira de fazer cinema no mundo inteiro.

Após mais de duas décadas sob o regime fascista de Benito Mussolini, os artistas redescobriam a liberdade. Além disso, se deparavam com um imenso leque de histórias que precisavam ser contadas. Histórias de gente simples, vistas nas ruas, nas praças ou nas igrejas.

Ladrões de bicicletas, de Vittorio de Sica

Cesare Zavattini, que viria a se tornar um dos principais roteiristas do novo movimento que surgia, disse:

“Eu quero conhecer o real protagonista da vida cotidiana, quero ver como ele é, se tem ou não um bigode, se é alto ou baixo, quero ver seus olhos, quero falar com ele.”

Assim como Zavattini, outros realizadores acreditavam que para levar essas histórias ao cinema era preciso encontrar uma forma nova, algo que fizesse dessa arte um reflexo ainda mais preciso da realidade. Com esse plano em mente, teve origem o movimento que ficou conhecido como neorrealismo italiano.

De todos os expoentes do movimento, o cineasta Vittorio De Sica foi talvez quem melhor levou adiante as suas intenções.

Nascido em 1901,ele iniciou no cinema na década de 1920, e teve uma bem sucedida carreira de ator de filmes de comédia. De Sica, porém, dizia: “eu precisava expressar o meu pequeno mundo interior”.

Assim, no pós-guerra, numa frutífera parceria com o já citado Zavattini, ele se torna diretor, e assina filmes que colocariam seu nome de forma irrevogável na história do cinema.

Uma nova estética

Visando a encontrar uma estética apropriada, De Sica rompe com características do cinema de então. Em vez de gravar em estúdios, ele opta por lugares reais. No elenco, atores profissionais contracenam com amadores. Além de conferir às ficções uma aparência documental, esses rostos e locações gerariam identificação com o público.

Para fazer Vítimas da tormenta (“Sciuscià”, 1946), uma história de amizade entre dois garotos com um desenrolar trágico, o diretor procurou por seus atores entre as crianças que brincavam nas ruas de Roma.

Conta-se que ele perguntava para centenas de meninos se eles sabiam lutar ou chorar quando fosse preciso, mas principalmente investigava se possuíam a espontaneidade e a energia que atores profissionais não poderiam entregar porque agiam de modo demasiado calculado e previsível.

Vítimas da tormenta, de Vittorio de Sica

Em Ladrões de bicicleta (“Ladri di biciclette”, 1948), De Sica deu continuidade ao seu projeto. O filme conta a história de um pai de família chamado Antonio que, após vender o pouco que tem para comprar uma bicicleta e poder trabalhar, vê o objeto ser roubado, e parte pela cidade durante um dia inteiro à procura do ladrão, acompanhado do seu pequeno filho Bruno.

Para interpretar o papel desse homem desesperado, De Sica escolheu o operário Lamberto Maggiorani, cuja timidez e vergonha foram exploradas durante as filmagens pelo cineasta. Quanto ao menino que interpreta Bruno, De Sica o conheceu após as gravações terem iniciado: “Eu falava alguma coisa para Maggiorani quando eu me virei em direção à multidão que nos assistia e vi um garoto de olhar esquisito e rosto redondo, com um nariz grande e engraçado e olhos maravilhosamente vivos. São Januário o enviou para mim, pensei. Era a prova de que tudo estava correndo bem”.

A interação entre a dupla é um dos principais elementos a compor a grandeza desse filme. A cumplicidade de ambos transborda da tela para o público, fazendo com que as pessoas que assistem à jornada dos dois personagens sofram junto com eles e prendam a respiração quando a história ameaça se tornar uma tragédia ainda maior.

No ápice do desespero, o pai rouba a bicicleta de outra pessoa, e só não é linchado pelo grupo que o captura porque este se compadece do filho que observa a cena.

Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica

Enquanto pai e filho voltam a se misturar à multidão, no rosto de Antonio está estampada a vergonha em ter sucumbido e agido como o homem que o roubara, com o próprio filho como testemunha. Em Bruno, por sua vez, a inocência foi ferida. O rapaz acaba de descobrir algo sobre as pessoas e sobre o mundo que não gostaria de saber, mas que dali em diante faz parte de quem ele é.

Diferentes aspectos do “neorrealismo”

Após ser aclamado por Ladrões de bicicleta, De Sica surpreende com um filme que em alguns aspectos se afasta do que o neorrealismo propunha até então.

Naquelas histórias envolvendo jovens presos por envolvimento em falcatruas ou um pai e seu filho obstinados em achar quem os roubou, histórias tão calcadas em acontecimentos prosaicos, parecia não haver espaço para o fantástico, o sobrenatural.

Em Milagre em Milão (“Miracolo a Milano”, 1951), De Sica viola essa suposta regra. O filme, que inicia com as palavras “era uma vez…” sobre a tela, é como um conto de fadas.

Totò foi um bebê abandonado, que cresceu sob os cuidados da amável senhora que o encontrou. Quando ela morreu, ele foi enviado para um orfanato, e de lá saiu crescido para um mundo que sua inocência o impede de entender, mas que ainda assim ele tenta consertar.

Milagre em Milão

Bondoso, ele cumprimenta desconhecidos, oferece de presente ao ladrão a bolsa que este tentava lhe roubar e até mesmo finge ter uma má-formação no rosto toda vez que encontra um homem que de fato a tem, só para que ele não se sinta solitário.

Certo dia, Totò recebe dos céus o dom de atender a quaisquer pedidos que lhe forem feitos, e passa então a realizar os sonhos das pessoas da comunidade pobre onde ele vive, nos arredores de Milão.

Num passe de mágica, uma estátua de mulher pela qual um homem é apaixonado ganha vida e um chapéu surge na cabeça de um amigo.

Milagre em Milão

Com seu desenvolvimento cada vez mais insólito, Milagre em Milão demonstra a dificuldade em abarcar sob um mesmo nome, tal como “neorrealismo italiano”, as diferenças entre os filmes ou cineastas a que ele se refere.

Embora as semelhanças permitam pensá-los em conjunto, um filme como Milagre em Milão, cuja última cena mostra os personagens voando pelas nuvens em busca de “um reino onde ‘bom dia’ signifique verdadeiramente ‘bom dia’”, esbanja um otimismo que contrasta, por exemplo, com a desolação representada em Alemanha, ano zero (“Germania anno zero”, 1948), de Roberto Rossellini, outro representante do movimento.

Outra objeção ao nome do movimento é a ênfase dada ao “realismo”. Embora fosse reivindicado, os filmes não se limitavam a esse aspecto. Se assim o fosse, melhor seria olhar pela janela, diz o crítico André Bazin.

Esse grupo de filmes buscava se aproximar do mundo real quase ao ponto de tocá-lo “para que, em última instância, a própria vida se transforme em espetáculo, para que, nesse puro espelho, seja finalmente vista como poesia”, diz ainda o autor francês. Mais do que uma representação da realidade, portanto, o neorrealismo pretendia torná-la de fato percebida.

Outra percepção da realidade

O poder do cinema de descortinar o que estamos habituados a ver e assim revelar o extraordinário que se encontra escondido está em evidência no filme Umberto D. (1952), também de Vittorio De Sica.

O protagonista que dá nome à obra é um homem de idade que vive em companhia de seu cachorro Flyke. Aposentado e sem renda, ele tenta meios de pagar o aluguel do quarto que ocupa numa pensão cuja locatária ameaça despejá-lo.

Acompanhando por alguns dias os passos desse personagem e de outros à sua volta, o filme se transforma em um estudo sobre a existência a partir da observação dos pequenos gestos.

Numa sequência, uma jovem prepara o café da manhã. Pequenas ações se sucedem: acender o fogão, olhar pela janela, encher a chaleira, esperar a água ferver, moer o café.

Entre um instante e outro, a personagem põe as mãos sobre o ventre (sabemos que ela está grávida) e, ao sentar numa cadeira, sempre em silêncio, seus olhos aparecem molhados de lágrimas. Por que ela chora? Ela estaria feliz, triste, angustiada com os rumos que sua vida toma? Não há uma resposta definitiva, apenas hipóteses. Nessa sequência, o filme expõe parte do mistério que as pessoas são umas para as outras.

Umberto D

Quando Umberto não vê saída para conseguir dinheiro, ele arrisca uma última alternativa.

Novamente, o filme apresenta uma sucessão de gestos: após encostar-se num muro, o homem realiza em etapas um movimento com o braço e a mão. Umberto os estende, num golpe os traz de volta para junto do corpo e em seguida repete a ação.

Entendemos, enfim, o que se passa: pela primeira vez, ele age como um pedinte.

Umberto D

Mais do que capturar um gesto, a câmera testemunha o seu surgimento e nos faz pensar no significado que ele adquire em função da dificuldade em se concretizar e da resistência daquele homem em aceitar que o pratica. Trata-se de um ponto de virada na trajetória de Umberto D., que talvez se sinta humilhado e envergonhado ao admitir estar completamente à mercê da boa vontade e da ajuda de desconhecidos.

Momentos como esse fizeram André Bazin afirmar:

“o que acabamos de saber sobre o velho ou sobre a menina, através de seus infortúnios acidentais, diz respeito, antes de tudo, à condição humana. Não hesitarei em afirmar que o cinema raramente foi tão longe na tomada de consciência do fato de ser humano.”

Dono de tamanha sensibilidade, Vittorio De Sica pôs a câmera à altura das pessoas comuns para mostrar como a vida de cada um, quando contemplada com um olhar atento, revela-se como o palco de lutas com as quais todos podem se identificar.

Todos os filmes citados no texto estão disponíveis na Lumine.

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