CENA DO FILME "A ROTINA TEM SEU ENCANTO", DE YASUJIRO OZU - LUMINE

A poesia de todos os instantes: o cinema de Yasujiro Ozu

O japonês Yasujiro Ozu é considerado um dos grandes mestres da história do cinema.

Dono de um estilo inconfundível, Ozu construiu uma filmografia extensa, iniciada ainda na era dos filmes silenciosos e concluída na década de 60, época em que o cineasta começou a ser conhecido e estudado no Ocidente.

Os seus filmes são bem diferentes daqueles com os quais o público de hoje está geralmente acostumado: neles, há pouca ação, a expressão dos sentimentos não é exagerada e há uma economia até mesmo nos movimentos de câmera.   

Não é um cinema feito para embriagar os sentidos, mas uma arte que convida à contemplação, à observação atenta dos gestos, dos objetos, da natureza, de todos os elementos que, por sua vez, foram previamente contemplados pela câmera de Ozu. O ritmo das narrativas é calmo, pois o que lhes motiva não são grandes conflitos ou aventuras, mas dramas rotineiros.

Cena de A rotina tem seu encanto

Contudo, por trás dessa calma esconde-se um conflito que pode ser muito maior do que se imagina: como preencher de sentido as horas do dia? Podemos dizer que as narrativas criadas por Ozu são uma resposta a essa questão.

A escritora brasileira Adélia Prado diz que a única coisa comum a todos os homens, em qualquer lugar do mundo e em qualquer período histórico, é o cotidiano.

Por isso a tradução brasileira da última obra do cineasta japonês é muito acertada, pois, segundo ela, “a rotina tem seu encanto”. E é justamente disto que falam os filmes de Ozu: da busca pelo sentido da vida dentro do cotidiano.

Praticar uma arte

Em Pai e Filha, acompanhamos a história de Noriko Somiya, personagem vivida pela atriz Setsuko Hara.

Noriko está se aproximando dos trinta anos e, por esse motivo, todos à sua volta querem que ela se case o quanto antes. Mas Noriko não pretende se casar, pois quer continuar cuidando do seu pai, o senhor Somiya, que é viúvo e depende da filha para ter uma rotina bem estruturada.

É um conflito banal, mas o modo como Ozu o filma ilustra algumas características do seu cinema e da obra de outros grandes artistas: a imitação da natureza, a busca pelas coisas perenes e o anseio pela transcendência.

O título original do filme é Banshun, expressão que poderia ser traduzida como “primavera tardia”. É uma referência à idade de Noriko, mas demonstra também a relação que existe entre o conflito apresentado e os ciclos da natureza.  Não é à toa que o filme inicia com a imagem das árvores sacudidas pelo vento e termina com as ondas quebrando na praia.  Tais imagens situam a história outra esfera, mostrando que ela é apenas uma pequena parte de uma realidade muito maior.

Frames de “Pai e filha”

O modo de Ozu fazer cinema estabelece um diálogo com a arte primitiva do Japão, segundo a qual toda atividade humana é uma arte e, sendo assim, deve ser exercida da melhor maneira possível. Nessa perspectiva, as pequenas tarefas do cotidiano assumem um valor religioso, pois tudo o que fazemos deve ter uma ligação com a nossa natureza essencial.

Essa preocupação pode ser identificada nos gestos quase ritualísticos com os quais as tarefas domésticas são realizadas pelos personagens de Ozu, assim como na própria forma dos filmes. Durante toda a sua carreira, o cineasta empregou poucas variações estilísticas: usou os mesmos ângulos de câmera, o mesmo ritmo de montagem, a mesma estrutura narrativa, etc. Fazer filmes era o seu cotidiano, e a repetição obstinada dos mesmos procedimentos demonstra o amor que Ozu nutria por ele.

Construir a própria felicidade

Em Pai e filha, o cuidado religioso para com a vida aparece num contexto específico: o casamento. Noriko compreende a necessidade de se sacrificar pelo próximo, mas ainda não compreende a natureza do amor matrimonial, e por isso ela reluta em aceitar o casamento. É o seu pai que, num diálogo repleto de sabedoria, lhe explica que ser uma esposa também é uma maneira de ser uma artista, no sentido tradicional do termo.

Na cena desse diálogo, embora pareça que Ozu está expressando uma visão “modernista” do casamento, pois o senhor Somiya está falando que Noriko deve “buscar construir a sua própria felicidade”, na verdade ele está dizendo que a felicidade verdadeira só pode ser alcançada pelo sacrifício e pelo amor ao próximo. A busca por uma “felicidade” abstrata é uma imensa fonte de frustrações. A felicidade é uma consequência do sacrifício e da doação de si mesmo.

Pai e filha”

E isso se aplica ao próprio Ozu: um artesão do cinema, autor de mais de sessenta filmes, quase todos dedicados à revelação da beleza que pode existir em todos os momentos da vida. É verdade que nem sempre essa beleza está destituída de melancolia, de uma tristeza resignada advinda da impassibilidade frente a um determinado estado de coisas. Mas aí, novamente, a felicidade possível não existirá por si mesma, mas será fruto da aceitação do sofrimento.

Sob essa perspectiva, é possível compreender melhor o sentimento das histórias contadas por Ozu. Existe uma ambivalência, um sabor agridoce, criado a partir  de algumas tensões que estabelecem as dinâmicas principais dessas obras: entre o trabalho e a vida doméstica; os homens e as mulheres; o indivíduo e a sociedade; o homem e a natureza; o transitório e o permanente; o antigo e o novo.

A rotina tem seu encanto?

Em Era uma vez em Tóquio (considerado, por muitos críticos, como um dos dez melhores filmes da história do cinema), vemos um conflito de gerações ocasionado pela excessiva modernização da vida. Já não existe mais o respeito pela ancestralidade, e por isso o casal de idosos que sai de uma cidade do interior para visitar os filhos em Tóquio é visto por eles apenas como um incômodo.

Quando o cotidiano aparece dissociado da visão tradicional, as atividades diárias já não são mais vistas como a realização de uma arte, mas apenas como um conjunto de obrigações entediantes. Além disso, a modernização da vida não altera apenas a relação do indivíduo com o tempo e com o espaço, altera também os seus valores e, consequentemente, todos os relacionamentos humanos.

Nesse filme, novamente nos deparamos com uma jovem chamada Noriko (também interpretada por Setsuko Hara), mas trata-se de uma nova personagem. Assim como a Noriko de Pai e Filha representava a harmonia entre a vida individual e os ciclos da natureza, a Noriko de Era uma vez em Tóquio representa um contraponto à perda dos valores instituída pela modernidade. Noriko é a nora do casal Hirayama; diferente dos filhos do casal, ela demonstra grande respeito pela ancestralidade, dedicando aos dois idosos o tempo e a atenção que os filhos nãos lhes dedicaram.

Setsuko Hara como Noriko em "Era uma vez em Tóquio"

Setsuko Hara como Noriko em “Era uma vez em Tóquio

Por isso o senhor Hirayama presenteia Noriko com um relógio que pertencera à sua esposa: é um símbolo da continuidade temporal, de um diálogo saudável entre a tradição e a modernidade. De certa forma, o objeto sintetiza alguns aspectos da arte de Ozu , que utiliza o cinema, um dos grandes símbolos do mundo moderno, para se contrapor aos efeitos colaterais da modernidade, como a perda de identidade cultural do seu país e a vida vertiginosa das metrópoles, movida pela ansiedade.

Aí, ao adotar uma forma cinematográfica que exige do espectador um estado aprofundado de atenção, Ozu nos convida a buscar aquilo que é perene por trás da efemeridade das coisas banais. Os ponteiros do relógio repetem o mesmo percurso todos os dias, mas tudo o que acontece durante esse intervalo pode ser uma fonte de beleza e de sentido.  Basta olhar para o cotidiano com o mesmo olhar contemplativo da câmera de Ozu, e então o espectador será capaz de captar pelo menos um pouco da poesia que pode existir em todos os instantes.

Estão disponíveis na Lumine os seguintes filmes de Yasujiro Ozu: Pai e filha, Era uma vez em Tóquio, Bom dia e A rotina tem seu encanto.

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