Gatsby no cinema: entre o sonho e a desilusão
Por Francisco Escorsim
|
14.out.2025
Midle Dot

Em um dos episódios do programa Crítica Cultural, aqui na Lumine, comentei sobre as adaptações literárias no cinema, um território ainda pouco explorado por críticos e teóricos, tanto da sétima quanto da sexta arte. É um tema fascinante, sobretudo porque as duas linguagens nem sempre se encontram de forma harmoniosa. Há uma tensão permanente entre a palavra escrita e a imagem em movimento, entre o que imaginamos e o que imaginaram por nós.

Recentemente, ao reler O Grande Gatsby, revisitei também algumas de suas adaptações cinematográficas. Concluí que as comparações entre elas e o romance original podem ser um bom ponto de partida para explorar esse terreno que, desconfio, talvez se pareça mais com o encontro de dois rios do que com uma terra firme.

Fitzgerald criou uma obra que é, ao mesmo tempo, um retrato de época — a chamada “era do jazz”, dos anos 1920 — e uma reflexão sobre a desilusão do sonho americano, que beira o delírio. Talvez o modo como esse retrato foi construído seja o primeiro aspecto a chamar a atenção de qualquer leitor que assista às adaptações.

Os retratos

O livro foi publicado em 1925 e, já no ano seguinte, ganhou sua primeira adaptação, ainda na era do cinema mudo. Infelizmente, essa versão de 1926 se perdeu, restando apenas fragmentos. Em 1949, veio uma nova adaptação, dirigida por Elliott Nugent. Como o romance faz uso expressivo das cores — o verde, em especial, é um símbolo central na narrativa —, o fato de o filme ser em preto e branco, com uma atmosfera mais próxima do film noir do que do brilho dos “loucos anos 1920”, já o torna distinto. Isso, contudo, não o torna um filme ruim.

Já as demais adaptações, tanto a de Jack Clayton, com roteiro de Francis Ford Coppola, de 1974, como a do telefilme de 2000, de Robert Markowitz, e a mais recente de Baz Luhrmann, de 2013, são mais fiéis aos anos 1920 do livro, com o primeiro mais do que os demais. 

Ainda assim, é a adaptação de Luhrmann, com seu estilo flamboyant — vibrante, intenso, colorido — que melhor captura não apenas a ambientação, mas a atmosfera do período. O exagero visual cria uma realidade próxima do sonho, ou mesmo da embriaguez, necessária para que o contraste da desilusão se torne mais evidente.

Até o uso questionável de músicas contemporâneas no filme, recusando o jazz que é elemento importante no livro, faz sentido. Faz sentido quando se pensa não no que escutavam os personagens, mas no sentido contraventor que a escuta do gênero significava. Colocar outros gêneros anacrônicos “escandaliza” como escutar jazz escandalizava na época. 

As Reflexões

Mas as adaptações da obra precisam também retratar a dimensão trágica dos “loucos anos 1920”, pois é a partir da tragédia que o narrador, Nick Carraway, um dos personagens, conta a história. Desde o início, Nick faz uma condenação moral daquele mundo que ele observou com fascínio no início e repulsa em seguida.

Nick vê Nova York, o Leste, como “a poeira que envolvia e matou Gatsby”, a “poeira” que o envolveu também. É uma perspectiva que revela mais sobre o narrador do que sobre os eventos narrados. Há um julgamento moral que ecoa os valores do Meio-Oeste de onde ele vem, os valores “de antigamente”.

Aqui  também a versão de Luhrmann me parece mais assertivo do que as demais na adaptação. Ao tomar a liberdade de iniciar o filme de forma bem diferente do livro, apresentando Nick como um alcoólatra em tratamento em 1929, contando sua história para um psiquiatra, o diretor australiano ilumina algo que passa facilmente despercebido no texto original: Nick raramente havia bebido antes daqueles eventos fatídicos.

Essa escolha narrativa não é apenas uma liberalidade artística, é uma interpretação psicológica acurada do personagem-narrador. O álcool torna-se, na versão de Luhrmann, o símbolo da corrupção que Nick absorveu daquele mundo que tanto critica. Ele não saiu ileso da experiência; carrega as cicatrizes daquilo que testemunhou. 

É a partir dessas cicatrizes que a história é contada e que a versão de Baz Luhrmann melhor retrata. A que melhor nos confronta com uma questão fundamental: o que vemos quando olhamos para Gatsby? O mesmo que Nick, um idealista sonhador destruído pela displicência materialista e hedonista dos ricos? Um criminoso romântico? Um romântico tolo? Um símbolo da impossibilidade de reinvenção? 

O Melhor Espelho

Talvez a resposta esteja na própria multiplicidade dessas interpretações. O Grande Gatsby resiste a uma leitura única porque Fitzgerald construiu uma obra que é, ela mesma, um espelho refletindo tanto o observador quanto o observado, tanto Nick quanto Gatsby, tanto a América dos anos 1920 quanto a época do leitor ou espectador.

Isso não significa que a versão de Luhrmann seja o melhor filme, porém. Apenas analisei aqui as adaptações do livro, não a qualidade em si das obras cinematográficas. A de 1949, por exemplo, é a que mais se permite construir uma história para além da narrativa e, como cinema, talvez seja superior às demais. 

A de 1974, por sua vez, é a mais fiel à narrativa, mas entrega um Robert Redford que fica aquém do protagonista do livro. Leonardo DiCaprio, na versão de Luhrmann, se sai melhor, mas também não fica à altura do Gatsby literário, o que já seria suficiente para justificar novas tentativas de adaptação. O melhor Gatsby, talvez, seja aquele que ainda está por vir.

Assim, entre todas as versões, fica a certeza de que o livro permanece maior que qualquer uma de suas adaptações, não por superioridade da literatura sobre o cinema, mas porque Fitzgerald criou uma obra que é, ela mesma, sobre a impossibilidade de capturar completamente aquilo que desejamos. E nisso, ironicamente, todas as adaptações são fiéis ao espírito do livro.

Leia mais de Francisco Escorsim 

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Em um dos episódios do programa Crítica Cultural, aqui na Lumine, comentei sobre as adaptações literárias no cinema, um território ainda pouco explorado por críticos e teóricos, tanto da sétima quanto da sexta arte. É um tema fascinante, sobretudo porque as duas linguagens nem sempre se encontram de forma harmoniosa. Há uma tensão permanente entre a palavra escrita e a imagem em movimento, entre o que imaginamos e o que imaginaram por nós.

Recentemente, ao reler O Grande Gatsby, revisitei também algumas de suas adaptações cinematográficas. Concluí que as comparações entre elas e o romance original podem ser um bom ponto de partida para explorar esse terreno que, desconfio, talvez se pareça mais com o encontro de dois rios do que com uma terra firme.

Fitzgerald criou uma obra que é, ao mesmo tempo, um retrato de época — a chamada “era do jazz”, dos anos 1920 — e uma reflexão sobre a desilusão do sonho americano, que beira o delírio. Talvez o modo como esse retrato foi construído seja o primeiro aspecto a chamar a atenção de qualquer leitor que assista às adaptações.

Os retratos

O livro foi publicado em 1925 e, já no ano seguinte, ganhou sua primeira adaptação, ainda na era do cinema mudo. Infelizmente, essa versão de 1926 se perdeu, restando apenas fragmentos. Em 1949, veio uma nova adaptação, dirigida por Elliott Nugent. Como o romance faz uso expressivo das cores — o verde, em especial, é um símbolo central na narrativa —, o fato de o filme ser em preto e branco, com uma atmosfera mais próxima do film noir do que do brilho dos “loucos anos 1920”, já o torna distinto. Isso, contudo, não o torna um filme ruim.

Já as demais adaptações, tanto a de Jack Clayton, com roteiro de Francis Ford Coppola, de 1974, como a do telefilme de 2000, de Robert Markowitz, e a mais recente de Baz Luhrmann, de 2013, são mais fiéis aos anos 1920 do livro, com o primeiro mais do que os demais. 

Ainda assim, é a adaptação de Luhrmann, com seu estilo flamboyant — vibrante, intenso, colorido — que melhor captura não apenas a ambientação, mas a atmosfera do período. O exagero visual cria uma realidade próxima do sonho, ou mesmo da embriaguez, necessária para que o contraste da desilusão se torne mais evidente.

Até o uso questionável de músicas contemporâneas no filme, recusando o jazz que é elemento importante no livro, faz sentido. Faz sentido quando se pensa não no que escutavam os personagens, mas no sentido contraventor que a escuta do gênero significava. Colocar outros gêneros anacrônicos “escandaliza” como escutar jazz escandalizava na época. 

As Reflexões

Mas as adaptações da obra precisam também retratar a dimensão trágica dos “loucos anos 1920”, pois é a partir da tragédia que o narrador, Nick Carraway, um dos personagens, conta a história. Desde o início, Nick faz uma condenação moral daquele mundo que ele observou com fascínio no início e repulsa em seguida.

Nick vê Nova York, o Leste, como “a poeira que envolvia e matou Gatsby”, a “poeira” que o envolveu também. É uma perspectiva que revela mais sobre o narrador do que sobre os eventos narrados. Há um julgamento moral que ecoa os valores do Meio-Oeste de onde ele vem, os valores “de antigamente”.

Aqui  também a versão de Luhrmann me parece mais assertivo do que as demais na adaptação. Ao tomar a liberdade de iniciar o filme de forma bem diferente do livro, apresentando Nick como um alcoólatra em tratamento em 1929, contando sua história para um psiquiatra, o diretor australiano ilumina algo que passa facilmente despercebido no texto original: Nick raramente havia bebido antes daqueles eventos fatídicos.

Essa escolha narrativa não é apenas uma liberalidade artística, é uma interpretação psicológica acurada do personagem-narrador. O álcool torna-se, na versão de Luhrmann, o símbolo da corrupção que Nick absorveu daquele mundo que tanto critica. Ele não saiu ileso da experiência; carrega as cicatrizes daquilo que testemunhou. 

É a partir dessas cicatrizes que a história é contada e que a versão de Baz Luhrmann melhor retrata. A que melhor nos confronta com uma questão fundamental: o que vemos quando olhamos para Gatsby? O mesmo que Nick, um idealista sonhador destruído pela displicência materialista e hedonista dos ricos? Um criminoso romântico? Um romântico tolo? Um símbolo da impossibilidade de reinvenção? 

O Melhor Espelho

Talvez a resposta esteja na própria multiplicidade dessas interpretações. O Grande Gatsby resiste a uma leitura única porque Fitzgerald construiu uma obra que é, ela mesma, um espelho refletindo tanto o observador quanto o observado, tanto Nick quanto Gatsby, tanto a América dos anos 1920 quanto a época do leitor ou espectador.

Isso não significa que a versão de Luhrmann seja o melhor filme, porém. Apenas analisei aqui as adaptações do livro, não a qualidade em si das obras cinematográficas. A de 1949, por exemplo, é a que mais se permite construir uma história para além da narrativa e, como cinema, talvez seja superior às demais. 

A de 1974, por sua vez, é a mais fiel à narrativa, mas entrega um Robert Redford que fica aquém do protagonista do livro. Leonardo DiCaprio, na versão de Luhrmann, se sai melhor, mas também não fica à altura do Gatsby literário, o que já seria suficiente para justificar novas tentativas de adaptação. O melhor Gatsby, talvez, seja aquele que ainda está por vir.

Assim, entre todas as versões, fica a certeza de que o livro permanece maior que qualquer uma de suas adaptações, não por superioridade da literatura sobre o cinema, mas porque Fitzgerald criou uma obra que é, ela mesma, sobre a impossibilidade de capturar completamente aquilo que desejamos. E nisso, ironicamente, todas as adaptações são fiéis ao espírito do livro.

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