Nos países nórdicos, mais precisamente no norte da Suécia, a luz solar manifesta-se por meio de alguns fenômenos peculiares: no verão, entre os meses de maio e julho, é possível observar o sol da meia-noite. No inverno, em janeiro, há períodos em que a escuridão predomina por vinte e quatro horas. E, quando temos apenas um pouco de luz, é como se não pudéssemos contar com ela.
Esse é o contexto material em que se situa a história do filme Luz de Inverno (Nattvardsgarterna, 1963), de Ingmar Bergman, o segundo filme da chamada Trilogia do Silêncio, composta também pelos filmes Através de um espelho (Såsom i En Spegel, 1961) e O Silêncio (Tystnaden,1963).
A trama do filme concentra-se em Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand), o pastor luterano de uma pequena comunidade rural sueca. Tomas está passando por uma espécie de crise existencial que o leva a questionar a sua fé. Em síntese, é isto que vemos no filme: os embates espirituais que ocorrem no interior do personagem.
Na primeira cena do, Tomas está presidindo o culto em sua igreja. Por exatos treze minutos, vemos um pragmático rito acontecer em seu curso esperado. Até que, durante a oração do Pai Nosso, há um corte para uma tomada externa em que vemos a corredeira de um rio (recurso simbólico que também está presente em outras obras de Bergman), como se fosse um sinal do movimento irrevogável da vida.
Todo o enredo do filme transcorre neste único dia de domingo, dentro deste pequeno espaço da igreja e seus arredores, circunstância que dita, portanto, tudo o que vemos: alguns poucos fiéis, um organista tedioso e displicente, um ritmo mecânico e pesaroso, alguns olhares aflitos, outros distraídos, uma cruz de madeira com um Cristo com os dedos das mãos quebrados, vultos de piedade e pequenos sinais de devoção. Observamos um celebrante de voz firme e postura tradicional tentando emular segurança e solenidade. Para não trair essa atmosfera, os quadros são inicialmente centralizados, valorizam ângulos retos e proporcionalidades. Porém, no desenvolvimento das sequências, Bergman abandona esse tipo de composição, para ilustrar o desequilíbrio que está presente na alma de Tomas.
Depois da cena do culto, somos levados à sacristia. E essa mudança de espaço simboliza a mudança da postura do personagem, pois agora Tomas aparece de um modo muito diferente de como o vimos durante o piedoso culto. Talvez caiba aqui a lembrança da passagem que nomeia os fariseus como “sepulcros caiados” (Mt 23, 27). Percebe-se um relaxamento daquilo que foi representado até então. Um dos planos apresenta um saco de moedas coletadas no dízimo, e a câmera desfoca um Cristo esquálido, com ares de morbidade, emagrecido, na cruz, simbolizando a aniquilação e a fraqueza de um Deus que nada pode. É como se entrássemos não apenas nos bastidores do templo, mas também no mundo interior do pastor Tomas.
Notamos que há algo estranho acontecendo com ele. Duas visitas à sacristia revelarão que estamos diante de uma realidade mais complexa do que a de um adoecimento do corpo, como até então fomos levados a pensar. Ele tosse, está com ares de doente, diz-se fraco. Esse sofrimento físico é real, mas a sua alma também está sofrendo. Alguns elementos são muito significativos para que compreendamos o universo de Tomas Ericsson: a sacristia parece um ambiente apertado e claustrofóbico; a porta é pequena, menor que a altura das pessoas que por ali passam. Como em Alice no País das Maravilhas, parece ser um objeto que separa a realidade da fantasia. Há também o constante “tic-tac” de um velho relógio, que por vezes é focalizado pela câmera, como um ruído de fundo — recurso bastante usado por Bergman —, o que sinaliza a inevitabilidade da passagem do tempo.
Esses elementos aprofundam a angústia do personagem central. As janelas também são um importante elemento cenográfico; elas insistem em aparecer, iluminando os ambientes internos com alguns feixes de luz — ainda que seja uma parca luz de inverno, como é ressaltado no título brasileiro do filme — e servindo como uma fonte de alívio para o pastor: irritado, curvado e prostrado, ele escora-se na janela para respirar melhor.
As janelas também transmitem a ideia de que é possível observar o interior dos personagens por meio delas, como podemos ver em alguns momentos específicos do filme. O primeiro é quando Tomas observa Karin Persson dando a notícia da morte do esposo aos seus filhos na mesa de jantar. E o segundo, quando Marta se ajoelha para rezar na capela, nos últimos momentos do filme: ao fundo, vemos claramente uma cruz formada pelas grades da janela — e um feixe de luz emanando do objeto.
Karin e Jonas Persson (Max von Sydow e Gunnel Lindblom) procuram o pastor Tomas porque o marido ficou deprimido após ter lido em um jornal que os chineses estariam armados com bombas atômicas, uma ameaça constante à esperança que Jonas ainda sentia pela vida. A partir do relato de Karin, passamos a esperar que o pastor ofereça ao homem palavras de conforto. Todavia, o religioso lança uma frase mecânica, um clichê: “Precisamos confiar em Deus”. Neste momento, o rosto de Jonas é tomado de constrangimento: para ele, a pobre resposta do presbítero é a ratificação de que nada pode mudar o curso das coisas (outra referência à correnteza do rio visto anteriormente).
Além do casal, há outra personagem importante: Marta, a professora interpretada por Ingrid Thulin. Durante a celebração do culto, a câmera chamou a atenção do espectador para ela, e isso não ocorre por acaso. Além de professora, Marta é uma voluntária assistente do pastor. Além disso, ela é também a sua amante secreta — embora existam rumores da relação entre eles. Ainda que o pastor seja viúvo e não haja impeditivos para que o presbítero tenha uma relação conjugal, Tomas não deseja que as outras pessoas saibam da sua relação com Marta.
Marta, por sua vez, parece viver esse amor unilateral como uma devoção. Após a visita do casal Persson, é ela quem aparece na sacristia. Ela toca Ericsson carinhosamente, a despeito da falta de acolhida dele, e pergunta o que lhe estaria afligindo. Ele responde: “Deus está em silêncio”. Ele também conta que o casal Persson ali estivera e que ele, no entanto, não conseguiu ajudá-los com suas palavras: “Eu não disse nada que prestasse”.
O diálogo segue, mas sem muita harmonia entre eles. Ela esperava que ele já tivesse lido a carta recentemente entregue por ela e que, quem sabe, agora correspondesse ao seu desejo de uma vida a dois. Porém, a carta não fora lida, pois Tomas ocupa-se em demasia com sua crise existencial. Então, ele pergunta à professora o porquê de ela ter comungado — uma vez que ela declara não ter fé —, e esta responde: “Não seria a comunhão um banquete de amor?”. A pergunta fica sem resposta. O pastor boceja, escora-se, dando sinais claros de um cansaço irresistível (próprios do humor deprimido). Então Marta lança a frase que julgo ser o centro da história, e talvez assim pudesse se chamar o filme: “Mais um domingo no vale de lágrimas”.
Um pouco depois, Marta une seu rosto ao de Ericsson e diz: “Deus não fala, e nunca falou, porque não existe”. Ela beija os lábios dele efusivamente, sem que o homem, de fato, corresponda ao gesto. Ela diz não se importar de pegar qualquer gripe, uma vez que qualquer doença que possa vir a ter seria bem-vinda se viesse dele.
Para Marta, só existe a vida pragmática: o beijo, o toque, coisas que não estão no campo da abstração. Deus, ao contrário, está. Assim como os nomes de Tomas e de Jonas, o nome de Marta também faz referência ao personagem bíblico homônimo. A passagem no Evangelho de São Lucas, capítulo 10, traz Marta e sua irmã, Maria. As duas são símbolos antitéticos diante da realidade transcendente. Maria, conta o Evangelho, senta-se para ouvir Jesus, enquanto Marta se ocupa de tarefas, sem dar a devida atenção ao momento sublime que se passava em sua casa. Ao fim do episódio, Cristo diz que Maria havia feito a melhor escolha, pois, ao ouvir Suas palavras, teria optado por algo elevado, que não lhe seria retirado; enquanto Marta decidira-se por uma realidade relativa, que geraria apenas ansiedade e fadiga.
A cena seguinte, que revela o conteúdo da carta escrita por Marta, é um dos pontos altos do filme, expressando a genialidade cinematográfica de Bergman. A sequência mostra, em um plano fictício, Marta com o olhar voltado ao espectador — uma quebra da quarta parede —, enunciando o conteúdo da mensagem por ela escrita ao pastor. Marta diz que, por meio da carta, teria tomado coragem de lhe falar daquilo que de modo presencial nunca conseguira. Em sua criação, Deus sempre foi uma figura presente, mas vaga e distante; ela não compreendia a fé obsessiva de Tomas — e aqui podemos lembrar de sua referência bíblica, Tomé, aquele que obsessivamente precisa do elemento visível para crer. A mulher também salienta o evidente contraste da profissão de fé do pastor e sua total indiferença à pessoa de Cristo. Entretanto, o conteúdo mais significativo do seu discurso diz respeito a uma súplica que ela havia feito. Neste momento, temos o primeiro ato de fé de Marta: em uma cena de grande profundidade dramática, ela relata que pediu a Deus que lhe fosse dado um sentido para a sua vida que fosse digno de sua força (Marta se considera uma mulher forte), e que ela teria recebido uma resposta. O sentido da sua vida seria ocupar-se de Tomas, uma difícil tarefa, que só poderia se expressar por um amor quase incondicional.
O pescador Jonas nos remete à figura do profeta bíblico, que recebe a missão divina de alertar o povo de Nínive de que a cidade seria destruída em face da conduta de seus habitantes. Porém, Jonas foge, é lançado ao mar e acaba engolido por um peixe gigante. Diante da morte, em um ato de contrição, é cuspido do interior do animal para a terra firme e parte rumo a Nínive. Não vendo saída, Jonas cumpre sua missão. Entretanto, ele questiona as intervenções de Deus, pois não vê sentido em poupar o povo daquela cidade.
Obviamente, o pescador Jonas tem várias particularidades que o distanciam da figura profética. É um personagem que está vivendo um conflito muito profundo em seu espírito, preso em suas neuroses e em um estado de ânimo abatido, que lhe traz recorrentes pensamento de suicídio. De fato, Jonas Persson comete suicídio à beira de um rio — é como se Bergman quisesse dizer que este Jonas foi deixado morto à beira das águas, e que, com ele, a intervenção divina não ocorreu. Apesar de ter um bom trabalho, filhos e uma boa esposa (que está grávida), Jonas não consegue ver motivos para viver após instalar sua vida à sombra da realidade de um mal pouco fundamentado.
Quando finalmente se vê a sós com o pescador, pouco antes do suicídio, Tomas despeja em Jonas toda a sua falta de fé; a sua descrença na intervenção divina e a sua indiferença quanto à existência da figura de Deus. Sobretudo quando afirma que, após a morte de sua própria esposa, não via mais motivos para continuar vivendo. Relembra sua experiência durante a Guerra Espanhola, e sua incapacidade de aceitar a dura realidade que presenciara. Ao fim, afirma que sua experiência com Deus somente se dava em uma falsa realidade criada por ele, onde todas as coisas eram organizadas e tudo fazia sentido.
De certa forma, Tomas reconhece a gravidade da conversa. Ele chega a dizer a Jonas que este deveria procurar um médico ou um psicólogo, reconhecendo uma espécie de incapacidade sua diante do caso, por tratar dos aspectos da alma. De fato, há sinceridade em seu discurso. Ainda assim, diante de alguém que está preso à condição neurótica de rompimento da própria vida, naquilo que parece ser a única saída para o seu sofrimento, o sacerdote falha ao tentar se equiparar ao sofrente: esta tentativa de nivelação não funciona como uma vinculação positiva, nem como estratégia para, num segundo momento, tentar dissuadir o homem. Ao contrário! De modo cruel, Tomas afirma que não há nada de sublime na realidade à qual estamos sujeitos e que não existe nada mais sem sentido do que o sofrimento humano. De modo magistral, Bergman conduz esta cena com a imagem de Cristo crucificado ao fundo. Assim, o que simbolicamente seria a máxima expressão do sentido do sofrimento se traduz como uma total ausência de sentido. Tomas diz: “Quero que saiba que não sou um bom sacerdote. Tinha fé em uma imagem improvável e particular de um deus paterno […] que amava a humanidade, mas a mim acima de tudo.”
No decorrer do diálogo, Tomas questiona Jonas para ver se este percebe o terrível erro que o sacerdote havia cometido. Por um curto instante, somos tomados por alguma esperança: talvez agora o religioso confesse seu erro e parta para uma retomada em seu pastoreio com a “ovelha perdida”. Mas não é isso o que ocorre. Ele permanece em sua derrota, reconhecendo-se como “um sacerdote ignorante, infeliz e ansioso”.
A transição entre o segundo ato e o final da obra é uma assinatura da maestria de Ingmar Bergman. Tomas vai até a casa de Marta, onde, como de costume, esta o recebe com toda a sua atenção. Mas Tomas está tomado pela amargura. Sentindo-se culpado pela morte de Jonas Persson, e ancorado em uma vida que assume ser necessariamente infeliz, Tomas atira sobre Marta palavras humilhantes. Aqui, Bergman demonstra como a violência verbal e gestual pode ser tão impactante quanto a agressão física.
Novamente, Marta assume sua resignação, exibindo a vivência de seu calvário particular — “viver o amor incondicional”, “viver por Tomas”. Adiante, vemos o pastor se dirigir à casa dos Persson para comunicar a morte de Jonas. A partir deste ponto, o diretor lança mão de cenas carregadas de divisões entre sombras e luzes, entre marcações físicas e linhas que dividem as cenas. Também é possível perceber outra importante representação bíblica: quando Pedro trai Jesus, coloca-se às sombras, à margem, fugindo da luz; o mesmo acontece com Judas Iscariotes, que, não vendo saída para sua angústia, entrega-se à escuridão do suicídio.
Nas últimas cenas, contemplamos o culto de final de tarde, celebrado somente para uma fiel: Marta. Uma celebração preparada exclusivamente para a única figura que parecia compreender a dor do próprio Cristo, a condição de amar apesar da rejeição do objeto amado, de amar sob qualquer circunstância, de amar diante da cruz. Marta ajoelha-se, e ao fundo vemos uma brilhante luz de crepúsculo invadir a igreja por uma janela que notadamente tem sua estrutura em forma de cruz. Esta luz é um dos poucos resquícios de esperança dentro do tétrico cenário apresentado pelo filme. É, talvez, um sinal de amor em meio a tanto sofrimento, a luz de Cristo, a árvore da vida que cresce nutrida pela fé de Marta.
Obra-prima de grande poder sugestivo, Luz de Inverno não apresenta um sentido fechado, e há inúmeras possibilidades de interpretação para o filme. De toda forma, Bergman consegue nos inserir dentro da realidade dramática de sua história, fazendo com que olhemos de perto os profundos conflitos existenciais sofridos por seus personagens, principalmente por Tomas, e nos compadeçamos deste homem que já não consegue mais acreditar no sentido das palavras que pronuncia e só tem alguns poucos feixes de luz para ampará-lo.
Assine a Lumine e assista hoje mesmo ao filme Luz de Inverno e a centenas de outros filmes clássicos e inspiradores!
Nos países nórdicos, mais precisamente no norte da Suécia, a luz solar manifesta-se por meio de alguns fenômenos peculiares: no verão, entre os meses de maio e julho, é possível observar o sol da meia-noite. No inverno, em janeiro, há períodos em que a escuridão predomina por vinte e quatro horas. E, quando temos apenas um pouco de luz, é como se não pudéssemos contar com ela.
Esse é o contexto material em que se situa a história do filme Luz de Inverno (Nattvardsgarterna, 1963), de Ingmar Bergman, o segundo filme da chamada Trilogia do Silêncio, composta também pelos filmes Através de um espelho (Såsom i En Spegel, 1961) e O Silêncio (Tystnaden,1963).
A trama do filme concentra-se em Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand), o pastor luterano de uma pequena comunidade rural sueca. Tomas está passando por uma espécie de crise existencial que o leva a questionar a sua fé. Em síntese, é isto que vemos no filme: os embates espirituais que ocorrem no interior do personagem.
Na primeira cena do, Tomas está presidindo o culto em sua igreja. Por exatos treze minutos, vemos um pragmático rito acontecer em seu curso esperado. Até que, durante a oração do Pai Nosso, há um corte para uma tomada externa em que vemos a corredeira de um rio (recurso simbólico que também está presente em outras obras de Bergman), como se fosse um sinal do movimento irrevogável da vida.
Todo o enredo do filme transcorre neste único dia de domingo, dentro deste pequeno espaço da igreja e seus arredores, circunstância que dita, portanto, tudo o que vemos: alguns poucos fiéis, um organista tedioso e displicente, um ritmo mecânico e pesaroso, alguns olhares aflitos, outros distraídos, uma cruz de madeira com um Cristo com os dedos das mãos quebrados, vultos de piedade e pequenos sinais de devoção. Observamos um celebrante de voz firme e postura tradicional tentando emular segurança e solenidade. Para não trair essa atmosfera, os quadros são inicialmente centralizados, valorizam ângulos retos e proporcionalidades. Porém, no desenvolvimento das sequências, Bergman abandona esse tipo de composição, para ilustrar o desequilíbrio que está presente na alma de Tomas.
Depois da cena do culto, somos levados à sacristia. E essa mudança de espaço simboliza a mudança da postura do personagem, pois agora Tomas aparece de um modo muito diferente de como o vimos durante o piedoso culto. Talvez caiba aqui a lembrança da passagem que nomeia os fariseus como “sepulcros caiados” (Mt 23, 27). Percebe-se um relaxamento daquilo que foi representado até então. Um dos planos apresenta um saco de moedas coletadas no dízimo, e a câmera desfoca um Cristo esquálido, com ares de morbidade, emagrecido, na cruz, simbolizando a aniquilação e a fraqueza de um Deus que nada pode. É como se entrássemos não apenas nos bastidores do templo, mas também no mundo interior do pastor Tomas.
Notamos que há algo estranho acontecendo com ele. Duas visitas à sacristia revelarão que estamos diante de uma realidade mais complexa do que a de um adoecimento do corpo, como até então fomos levados a pensar. Ele tosse, está com ares de doente, diz-se fraco. Esse sofrimento físico é real, mas a sua alma também está sofrendo. Alguns elementos são muito significativos para que compreendamos o universo de Tomas Ericsson: a sacristia parece um ambiente apertado e claustrofóbico; a porta é pequena, menor que a altura das pessoas que por ali passam. Como em Alice no País das Maravilhas, parece ser um objeto que separa a realidade da fantasia. Há também o constante “tic-tac” de um velho relógio, que por vezes é focalizado pela câmera, como um ruído de fundo — recurso bastante usado por Bergman —, o que sinaliza a inevitabilidade da passagem do tempo.
Esses elementos aprofundam a angústia do personagem central. As janelas também são um importante elemento cenográfico; elas insistem em aparecer, iluminando os ambientes internos com alguns feixes de luz — ainda que seja uma parca luz de inverno, como é ressaltado no título brasileiro do filme — e servindo como uma fonte de alívio para o pastor: irritado, curvado e prostrado, ele escora-se na janela para respirar melhor.
As janelas também transmitem a ideia de que é possível observar o interior dos personagens por meio delas, como podemos ver em alguns momentos específicos do filme. O primeiro é quando Tomas observa Karin Persson dando a notícia da morte do esposo aos seus filhos na mesa de jantar. E o segundo, quando Marta se ajoelha para rezar na capela, nos últimos momentos do filme: ao fundo, vemos claramente uma cruz formada pelas grades da janela — e um feixe de luz emanando do objeto.
Karin e Jonas Persson (Max von Sydow e Gunnel Lindblom) procuram o pastor Tomas porque o marido ficou deprimido após ter lido em um jornal que os chineses estariam armados com bombas atômicas, uma ameaça constante à esperança que Jonas ainda sentia pela vida. A partir do relato de Karin, passamos a esperar que o pastor ofereça ao homem palavras de conforto. Todavia, o religioso lança uma frase mecânica, um clichê: “Precisamos confiar em Deus”. Neste momento, o rosto de Jonas é tomado de constrangimento: para ele, a pobre resposta do presbítero é a ratificação de que nada pode mudar o curso das coisas (outra referência à correnteza do rio visto anteriormente).
Além do casal, há outra personagem importante: Marta, a professora interpretada por Ingrid Thulin. Durante a celebração do culto, a câmera chamou a atenção do espectador para ela, e isso não ocorre por acaso. Além de professora, Marta é uma voluntária assistente do pastor. Além disso, ela é também a sua amante secreta — embora existam rumores da relação entre eles. Ainda que o pastor seja viúvo e não haja impeditivos para que o presbítero tenha uma relação conjugal, Tomas não deseja que as outras pessoas saibam da sua relação com Marta.
Marta, por sua vez, parece viver esse amor unilateral como uma devoção. Após a visita do casal Persson, é ela quem aparece na sacristia. Ela toca Ericsson carinhosamente, a despeito da falta de acolhida dele, e pergunta o que lhe estaria afligindo. Ele responde: “Deus está em silêncio”. Ele também conta que o casal Persson ali estivera e que ele, no entanto, não conseguiu ajudá-los com suas palavras: “Eu não disse nada que prestasse”.
O diálogo segue, mas sem muita harmonia entre eles. Ela esperava que ele já tivesse lido a carta recentemente entregue por ela e que, quem sabe, agora correspondesse ao seu desejo de uma vida a dois. Porém, a carta não fora lida, pois Tomas ocupa-se em demasia com sua crise existencial. Então, ele pergunta à professora o porquê de ela ter comungado — uma vez que ela declara não ter fé —, e esta responde: “Não seria a comunhão um banquete de amor?”. A pergunta fica sem resposta. O pastor boceja, escora-se, dando sinais claros de um cansaço irresistível (próprios do humor deprimido). Então Marta lança a frase que julgo ser o centro da história, e talvez assim pudesse se chamar o filme: “Mais um domingo no vale de lágrimas”.
Um pouco depois, Marta une seu rosto ao de Ericsson e diz: “Deus não fala, e nunca falou, porque não existe”. Ela beija os lábios dele efusivamente, sem que o homem, de fato, corresponda ao gesto. Ela diz não se importar de pegar qualquer gripe, uma vez que qualquer doença que possa vir a ter seria bem-vinda se viesse dele.
Para Marta, só existe a vida pragmática: o beijo, o toque, coisas que não estão no campo da abstração. Deus, ao contrário, está. Assim como os nomes de Tomas e de Jonas, o nome de Marta também faz referência ao personagem bíblico homônimo. A passagem no Evangelho de São Lucas, capítulo 10, traz Marta e sua irmã, Maria. As duas são símbolos antitéticos diante da realidade transcendente. Maria, conta o Evangelho, senta-se para ouvir Jesus, enquanto Marta se ocupa de tarefas, sem dar a devida atenção ao momento sublime que se passava em sua casa. Ao fim do episódio, Cristo diz que Maria havia feito a melhor escolha, pois, ao ouvir Suas palavras, teria optado por algo elevado, que não lhe seria retirado; enquanto Marta decidira-se por uma realidade relativa, que geraria apenas ansiedade e fadiga.
A cena seguinte, que revela o conteúdo da carta escrita por Marta, é um dos pontos altos do filme, expressando a genialidade cinematográfica de Bergman. A sequência mostra, em um plano fictício, Marta com o olhar voltado ao espectador — uma quebra da quarta parede —, enunciando o conteúdo da mensagem por ela escrita ao pastor. Marta diz que, por meio da carta, teria tomado coragem de lhe falar daquilo que de modo presencial nunca conseguira. Em sua criação, Deus sempre foi uma figura presente, mas vaga e distante; ela não compreendia a fé obsessiva de Tomas — e aqui podemos lembrar de sua referência bíblica, Tomé, aquele que obsessivamente precisa do elemento visível para crer. A mulher também salienta o evidente contraste da profissão de fé do pastor e sua total indiferença à pessoa de Cristo. Entretanto, o conteúdo mais significativo do seu discurso diz respeito a uma súplica que ela havia feito. Neste momento, temos o primeiro ato de fé de Marta: em uma cena de grande profundidade dramática, ela relata que pediu a Deus que lhe fosse dado um sentido para a sua vida que fosse digno de sua força (Marta se considera uma mulher forte), e que ela teria recebido uma resposta. O sentido da sua vida seria ocupar-se de Tomas, uma difícil tarefa, que só poderia se expressar por um amor quase incondicional.
O pescador Jonas nos remete à figura do profeta bíblico, que recebe a missão divina de alertar o povo de Nínive de que a cidade seria destruída em face da conduta de seus habitantes. Porém, Jonas foge, é lançado ao mar e acaba engolido por um peixe gigante. Diante da morte, em um ato de contrição, é cuspido do interior do animal para a terra firme e parte rumo a Nínive. Não vendo saída, Jonas cumpre sua missão. Entretanto, ele questiona as intervenções de Deus, pois não vê sentido em poupar o povo daquela cidade.
Obviamente, o pescador Jonas tem várias particularidades que o distanciam da figura profética. É um personagem que está vivendo um conflito muito profundo em seu espírito, preso em suas neuroses e em um estado de ânimo abatido, que lhe traz recorrentes pensamento de suicídio. De fato, Jonas Persson comete suicídio à beira de um rio — é como se Bergman quisesse dizer que este Jonas foi deixado morto à beira das águas, e que, com ele, a intervenção divina não ocorreu. Apesar de ter um bom trabalho, filhos e uma boa esposa (que está grávida), Jonas não consegue ver motivos para viver após instalar sua vida à sombra da realidade de um mal pouco fundamentado.
Quando finalmente se vê a sós com o pescador, pouco antes do suicídio, Tomas despeja em Jonas toda a sua falta de fé; a sua descrença na intervenção divina e a sua indiferença quanto à existência da figura de Deus. Sobretudo quando afirma que, após a morte de sua própria esposa, não via mais motivos para continuar vivendo. Relembra sua experiência durante a Guerra Espanhola, e sua incapacidade de aceitar a dura realidade que presenciara. Ao fim, afirma que sua experiência com Deus somente se dava em uma falsa realidade criada por ele, onde todas as coisas eram organizadas e tudo fazia sentido.
De certa forma, Tomas reconhece a gravidade da conversa. Ele chega a dizer a Jonas que este deveria procurar um médico ou um psicólogo, reconhecendo uma espécie de incapacidade sua diante do caso, por tratar dos aspectos da alma. De fato, há sinceridade em seu discurso. Ainda assim, diante de alguém que está preso à condição neurótica de rompimento da própria vida, naquilo que parece ser a única saída para o seu sofrimento, o sacerdote falha ao tentar se equiparar ao sofrente: esta tentativa de nivelação não funciona como uma vinculação positiva, nem como estratégia para, num segundo momento, tentar dissuadir o homem. Ao contrário! De modo cruel, Tomas afirma que não há nada de sublime na realidade à qual estamos sujeitos e que não existe nada mais sem sentido do que o sofrimento humano. De modo magistral, Bergman conduz esta cena com a imagem de Cristo crucificado ao fundo. Assim, o que simbolicamente seria a máxima expressão do sentido do sofrimento se traduz como uma total ausência de sentido. Tomas diz: “Quero que saiba que não sou um bom sacerdote. Tinha fé em uma imagem improvável e particular de um deus paterno […] que amava a humanidade, mas a mim acima de tudo.”
No decorrer do diálogo, Tomas questiona Jonas para ver se este percebe o terrível erro que o sacerdote havia cometido. Por um curto instante, somos tomados por alguma esperança: talvez agora o religioso confesse seu erro e parta para uma retomada em seu pastoreio com a “ovelha perdida”. Mas não é isso o que ocorre. Ele permanece em sua derrota, reconhecendo-se como “um sacerdote ignorante, infeliz e ansioso”.
A transição entre o segundo ato e o final da obra é uma assinatura da maestria de Ingmar Bergman. Tomas vai até a casa de Marta, onde, como de costume, esta o recebe com toda a sua atenção. Mas Tomas está tomado pela amargura. Sentindo-se culpado pela morte de Jonas Persson, e ancorado em uma vida que assume ser necessariamente infeliz, Tomas atira sobre Marta palavras humilhantes. Aqui, Bergman demonstra como a violência verbal e gestual pode ser tão impactante quanto a agressão física.
Novamente, Marta assume sua resignação, exibindo a vivência de seu calvário particular — “viver o amor incondicional”, “viver por Tomas”. Adiante, vemos o pastor se dirigir à casa dos Persson para comunicar a morte de Jonas. A partir deste ponto, o diretor lança mão de cenas carregadas de divisões entre sombras e luzes, entre marcações físicas e linhas que dividem as cenas. Também é possível perceber outra importante representação bíblica: quando Pedro trai Jesus, coloca-se às sombras, à margem, fugindo da luz; o mesmo acontece com Judas Iscariotes, que, não vendo saída para sua angústia, entrega-se à escuridão do suicídio.
Nas últimas cenas, contemplamos o culto de final de tarde, celebrado somente para uma fiel: Marta. Uma celebração preparada exclusivamente para a única figura que parecia compreender a dor do próprio Cristo, a condição de amar apesar da rejeição do objeto amado, de amar sob qualquer circunstância, de amar diante da cruz. Marta ajoelha-se, e ao fundo vemos uma brilhante luz de crepúsculo invadir a igreja por uma janela que notadamente tem sua estrutura em forma de cruz. Esta luz é um dos poucos resquícios de esperança dentro do tétrico cenário apresentado pelo filme. É, talvez, um sinal de amor em meio a tanto sofrimento, a luz de Cristo, a árvore da vida que cresce nutrida pela fé de Marta.
Obra-prima de grande poder sugestivo, Luz de Inverno não apresenta um sentido fechado, e há inúmeras possibilidades de interpretação para o filme. De toda forma, Bergman consegue nos inserir dentro da realidade dramática de sua história, fazendo com que olhemos de perto os profundos conflitos existenciais sofridos por seus personagens, principalmente por Tomas, e nos compadeçamos deste homem que já não consegue mais acreditar no sentido das palavras que pronuncia e só tem alguns poucos feixes de luz para ampará-lo.
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