Takashi Shimura como Kenji Watanabe em "Viver", de Akira Kurosawa

“Viver”, de Akira Kurosawa

O japonês Akira Kurosawa é um dos grandes mestres da história do cinema.

O cineasta é geralmente citado pelos seus filmes de samurai, nos quais estabelece um diálogo com o gênero clássico do faroeste americano, transpondo as características desse gênero para o universo dos samurais.

Cena do filme "Os sete samurais", de Akira Kurosawa
“Os sete samurais” (1954)

Mas a filmografia de Kurosawa não se limita a um único gênero ou tema.

Além de ter dirigido filmes de ação intensa e de proporções épicas, ele também produziu histórias mais intimistas, com um ritmo mais lento; histórias cuja ação principal acontece no interior das personagens e não no exterior.

É o caso do filme Viver, de 1952.

Uma vida não vivida

Livremente inspirado na clássica novela A morte de Ivan Illich, do escritor russo Liev Tolstói, Viver conta a história do senhor Kanji Watanabe, funcionário público que, após descobrir que está com uma doença terminal e que lhe restam apenas seis meses de vida, começa a reavaliar todas as suas ações e percebe que até então não fizera nada de significativo para ele mesmo ou para os outros.

Na primeira imagem do filme, somos apresentados a esse protagonista, e um narrador nos introduz ao conflito da trama. Ele diz: “Esse é o senhor Watanabe. Seria enfadonho apresentá-lo, afinal, ele passa pela vida sem realmente vivê-la. Este homem está morto há mais de vinte anos”.

Cena do filme "Viver", de Akira Kurosawa
Takashi Shimura como Kanji Watanabe em Viver, de Akira Kurosawa

Embora o senhor Watanabe ainda esteja vivo, é como se ele já estivesse morto, pois há muito tempo está vivendo uma vida sem sentido. Ele ficou viúvo quando ainda era relativamente jovem e, depois da morte da sua esposa, a sua vida passou a se resumir na prática mecânica do trabalho, o que lhe fez mergulhar numa amargura cada vez maior. 

Além do serviço burocrático, Watanabe não procurou exercer nenhuma atividade que conferisse um sentido maior para a sua vida— e também não buscou transformar o seu próprio serviço em algo significativo. Como nos diz o narrador, ele foi “completamente absorvido pelas minúcias do serviço burocrático”.

Watanabe não tem amigos, é desprezado pelos seus colegas de repartição, que o veem como um homem amargurado e enfadonho, e o seu próprio filho mantém uma relação interesseira com ele. Prestes a morrer, este velho funcionário percebe que não construiu nada, não inspirou ninguém, não produziu nada belo, não ajudou ao próximo.

Porém, a iminência da morte o faz passar por uma transformação radical. E, antes de morrer, ele sente que é preciso buscar por esse sentido ausente para não sucumbir ao desespero.

Em busca de sentido

Primeiro, com o objetivo de “aproveitar” o tempo que lhe resta, Watanabe começa a buscar por prazeres mundanos: ir a festas, beber, sair com mulheres, mas esses prazeres só servem para acentuar o contraste entre a sua condição doente e a vivacidade das pessoas jovens.

Mais tarde, ele inicia uma amizade com Toyo Odagiri, uma de suas colegas de trabalho. A princípio, Odagiri o despreza, como todos os seus outros colegas, mas, após se conhecerem melhor, eles descobrem muitas coisas a respeito de si mesmos e acabam percebendo que ambos tem algo importante a oferecer ao outro.

Takashi Shimura e Miki Odagiri em cena do filme "Viver", de Akira Kurosawa
Watanabe e Odagiri

Alguns pequenos gestos solidários de Watanabe para com a sua colega o fazem recobrar a sua humanidade perdida, o fazem perceber o poder que uma ação simples pode exercer na vida das outras pessoas.

Além da sua amizade com Odagiri, o próprio trabalho de Watanabe servirá para o exercício da sua solidariedade, pois é por meio dele que se dará a sua transformação individual: Watanabe resolverá fazer tudo o que é possível para resolver o problema do fechamento de uma fossa. Há muito tempo a população estava solicitando esse serviço, mas, pela indolência e indiferença da parte das instituições responsáveis, ele acabou não sendo realizado.

Portanto, a fonte de sentido que Watanabe encontrará em seus últimos meses de vida será o amor ao próximo.

O indivíduo e a sociedade

Embora acompanhemos o drama individual de Watanabe, o personagem funciona como um símbolo de toda uma classe de indivíduos. Ao retratar o estado de inércia em que vivia o velho funcionário, Kurosawa estava fazendo uma crítica contundente ao funcionalismo público japonês como um todo, no qual “as pessoas sempre estavam muito ocupadas, mas onde ninguém fazia nada”, pois a existência do sistema não resultava em benefícios reais para as pessoas que precisavam dele.

Em um momento de ironia brilhante, um dos colegas de trabalho de Watanabe chega a dizer: “fazer alguma coisa é radical demais. Temos que agir como se não estivéssemos fazendo nada”. Ao mesmo tempo em que é cômica, a descrição desse comportamento é extremamente crítica: é como se as instituições fossem inúteis; como se os homens que trabalham para elas estivessem tão acostumados a ser ineficientes que cumprir os objetivos para os quais foram designados seria “radical demais”, seria quebrar o costume arraigado da inutilidade.

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Por outro lado, ao decidir “cumprir o seu papel”, fazendo tudo o que está a seu alcance para resolver os problemas cuja resolução lhe foi confiada, Watanabe demonstra o poder da força de vontade de um indivíduo, pois, além de resolver o problema da fossa, ele ainda consegue fazer com que seja construído um parque infantil no local onde ela ficava. Nesse sentido, a narrativa de Viver revela que, às vezes, basta uma resolução individual para que as coisas funcionem como deveriam. Que a vivacidade de um ânimo sincero é capaz de criar coisas belas mesmo no ambiente mais inóspito.

No contraste entre a indolência institucional e a força do indivíduo, podemos perceber também que boa parte da amargura de Watanabe era motivada pelo fato de que ele não correspondia ao que as pessoas esperavam dele, pois foi o reconhecimento dessa responsabilidade que fez com que ele se tornasse mais humano. Ou seja, o exercício do amor ao próximo foi um presente para o próprio Watanabe.

Para além da vida

Este é um dos pontos mais interessantes de Viver: Kurosawa demonstra o quanto a vida do indivíduo está enraizada na sociedade; o quanto os seus atos podem afetar positivamente a vida de muitos outros.  

Estamos no início da década de 50. O contexto histórico do filme ainda é o ambiente melancólico do Japão recém saído da guerra; da nação que, após anos de conflito armado, teve a população de duas de suas cidades mais importantes exterminada pela mais destrutiva das invenções humanas.

Nesse contexto, talvez não fosse incomum que as pessoas se tornassem indiferentes ao sofrimento alheio, que estivessem descrentes e desesperançosas. Por isso, ao descrever o poder das ações de um indivíduo dentro do mundo — indivíduo que redescobriu o sentido da vida na doação de si mesmo —, Viver surge como um belo testemunho de esperança.

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Kurosawa conta essa história singela com grande maestria: equilibrando os momentos melancólicos com os momentos irônicos, os momentos de humor com os momentos de ternura. Embora seja uma obra aparentemente mais simples do que os seus filmes de ação, há nesse filme imagens que entrariam para a história do cinema: destaque-se a cena de Watanabe no balanço do parque, desfalecendo sob a neve, enquanto canta a sua canção favorita. Como várias outras cenas do filme, esse é um momento poético, no sentido positivo da palavra.

Em síntese, Viver é um filme inspirador, uma narrativa edificante que levou o grande crítico francês André Bazin a declarar: “Penso que Viver é o filme japonês mais bonito, mais bem feito e mais comovente que já vi”.

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